sexta-feira, 1 de março de 2013

A língua de Alex



“Senti todos os meus malenques pelinhos do meu plote ficando de pé. Calafrios subindo, como malenques e lentos lagartos... porque eu conhecia aquilo. Era um trecho da gloriosa Nona de Ludwing Van.”

A tarde estava encoberta por um sol morno, e eu já havia assistido à aula de geografia. Era intervalo (o delicioso “recreio”, assim por nós apelidado) e a aula seguinte seria de matemática. Pois bem. Restando poucos minutos para o término do intervalo, eis que me veio a ideia mirabolante de “matar” a próxima aula. Explodiu-me num lampejo esta estranha e formidável ideia de não assistir à aula de matemática. Formidável porque eu, num ato de coragem, “mataria” a disciplina por uma boa causa. Um causa, digamos, de ordem cultural.

Saí às pressas, quase como fugindo dos olhares repressivos de todos os professores daquela escola. Do mestre de matemática, então, quase o via na minha frente de braços cruzados batendo o pé e reprovando minha atitude: “Ei, rapazote, vamos voltar pra sala de aula?”. E escapei da escola até chegar à rua, atravessá-la e pegar o primeiro ônibus em direção à Rodoviária. Lá chegando, caminhei até o edifício Conic e mais adiante o encantador Cine Atlântida, hoje desativado. Cartazes na parede confirmaram o que dias atrás meus olhos leram na seção de cinema no principal jornal da cidade:

“Em cartaz ‘Laranja mecânica’ (‘A clockwork orange’), do diretor Stanley Kubrick”.

A sinopse do filme atiçou-me os neurônios, e um dos cartazes exibia um homem de olhos esbugalhados, a boca aberta, o semblante demasiadamente sôfrego e aterrador. Aquilo causou turbilhão em meus pensamentos, de modo que logo paguei o bilhete e corri para garantir um bom lugar na espaçosa sala de lustres e tapetes suntuosos.
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 Eu relutava com meus botões: que diabo de relação poderia haver entre o título do filme e sua história. Meus caros, o início do filme nos convida a permanecer tesos na poltrona e vidrar os olhos na tela. O ator Malcolm MacDowell vive o protagonista Alex (Alexander De Large), jovem de personalidade ultraviolenta, admirador dos clássicos de Ludwig Van Beethoven, e que tem obsessão por estuprar, roubar e matar. E é o próprio Alex quem narra a maior parte do filme empregando o “Nadsat”, mistura de russo, inglês e cockney (dialeto inglês), ou seja, um conjunto de gírias criado pelo escritor inglês Anthony Burgess, autor do livro “Laranja mecânica” (1962), que inspirou Kubrick a criar sua versão para as telas do cinema.

Na língua de Alex, a expressão “rozzer” significa polícia, “drugue” é amigo, “chavalco” é homem, “moloko” é leite. “Eslovo” quer dizer palavra.

“Não direi nem um só eslovo sem o meu advogado presente.”

Em alguns dizeres de Alex, só é possível traduzir todo ou parte do seu significado através do conjunto de cenas, personagens, gestos, sons ou outros elementos. Com efeito, o dicionário para a tradução da língua de Alex será o contexto em que ela ocorre, a exemplo das expressões “sofistos”, “gavoritando” e “Prisestas”.

“Havia uns sofistos da TV perto de gente rindo e gavoritando.”

E mais adiante:

“Eu estava um pouco triste por deixar a velha Prisesta.”

A língua de Alex deve penetrar em nossos ouvidos perturbadora e enigmática, e perplexos haveremos de ficar diante de cada cena do filme, como criança que pela primeira vez se defronta com um eclipse solar. Daí podemos associar que o “Nadsat” seja tão duro, estranho e mecânico como são quase todas as cenas do filme. Combinação perfeita.

“Laranja mecânica” é bizarro em sua essência, mas belo, inteligente e clássico em sua inesgotabilidade. Não é obra que se encerra em seus aproximados 137 minutos de duração. Aos olhos de um mortal telespectador, ela pode durar um dia, um mês. Ou até mesmo uma eternidade.

Clique no link abaixo para ver um trêiler do filme:
http://www.youtube.com/watch?v=G7fO3bzPeBQ&feature=fvwp&NR=1
(duração 2’6”)

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