terça-feira, 31 de maio de 2011

Língua culta e popular.

“É mais fácil desintegrar um átomo do que um preconceito”.


Esta afirmativa de Albert Einstein nos conduz a refletir sobre outra forma de preconceito tão marcante, tão vivo e manifestável nos dias de hoje: o preconceito lingüístico. E faço questão de principiá-la nesta coluna para debater o episódio recente acerca do uso do livro ‘Por uma Vida Melhor’ da coleção Viver, aprender.

Antes de tudo, é preciso deixar claro que o livro pretende partir da linguagem popular, com suas exemplificações, para melhor ensinar a norma culta, a linguagem padrão, a gramática normativa propriamente dita.

Transcrevo fragmentos do texto do livro da autora Heloísa Ramos:

"É importante saber o seguinte: as duas variantes (norma culta e popular) são eficientes como meios de comunicação. A classe dominante utiliza a norma culta principalmente por ter maior acesso à escolaridade e por seu uso ser um sinal de prestígio. Nesse sentido, é comum que se atribua um preconceito social em relação à variante popular, usada pela maioria dos brasileiros.

“Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado. Você pode estar se perguntando: 'Mas eu posso falar 'os livro?'.' Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico. Muita gente diz o que se deve e o que não se deve falar e escrever, tomando as regras estabelecidas para a norma culta como padrão de correção de todas as formas linguísticas. O falante, portanto, tem de ser capaz de usar a variante adequada da língua para cada ocasião.

"Na variedade popular, contudo, é comum a concordância funcionar de outra forma. Há ocorrências como: Nós pega o peixe. - nós (1ª pessoa, plural); pega (3ª pessoa, singular)

“Os menino pega o peixe. - menino (3ª pessoa, ideia de plural - por causa do "os"); pega (3ª pessoa, singular).

“Nos dois exemplos, apesar de o verbo estar no singular, quem ouve a frase sabe que há mais de uma pessoa envolvida na ação de pegar o peixe. Mais uma vez, é importante que o falante de português domine as duas variedades e escolha a que julgar adequada à sua situação de fala.

"É comum que se atribua um preconceito social em relação à variante popular, usada pela maioria dos brasileiros. Esse preconceito não é de razão linguística, mas social. Por isso, um falante deve dominar as diversas variantes porque cada uma tem seu lugar na comunicação cotidiana".

"A norma culta existe tanto na linguagem escrita como na linguagem oral, ou seja, quando escrevemos um bilhete a um amigo, podemos ser informais, porém, quando escrevemos um requerimento, por exemplo, devemos ser formais, utilizando a norma culta. Algo semelhante ocorre quando falamos: conversar com uma autoridade exige uma fala formal, enquanto é natural conversarmos com as pessoas de nossa família de maneira espontânea, informal.”

Percebe-se que a autora preocupa-se, primeiramente, em informar que as duas variantes, a culta e a popular, são eficientes como meios de comunicação. Isto é inegável. Vejam que, em momento algum, ela deprecia uma variante ou outra. Pelo contrário, alerta que “o falante, portanto, tem de ser capaz de usar a variante adequada da língua para cada ocasião”.

Não conheço a autora, senão agora pelo seu livro, mas quero opinar a favor de suas exemplificações, que têm fundamentos linguístico, científico, ético, pedagógico-didático, tudo em benefício da educação e, mais propriamente, do ensino da língua portuguesa nas escolas.

Alguns opinaram contra o livro que nada mais é do que uma ferramenta útil com a qual o professor bem preparado poderá trabalhar com seus alunos. Alunos que falam de diferentes formas, com seus dialetos e sotaques característicos. Estudantes nortistas, nordestinos, sulistas, os do Centro-Oeste e do Sudeste.

O professor, gramático e linguista Celso Pedro Luft (1921 - 1995) orienta que “quaisquer que sejam as deficiências ou distâncias da língua culta que o aluno apresentar chegando à escola, é com esse material que o professor deve começar seu trabalho”. Ou seja, o livro que fala e valoriza as duas variantes (a culta e popular), mas que atenta para o fato de que devemos ser cuidadosos em usar uma ou outra no momento adequado.

Um professor que queira explicar aos seus alunos a norma culta, que queira ensinar a ele as relações sintáticas, pontuação, sujeito, verbo e predicado, e outros tópicos da gramática, este professor deve necessariamente começar pela explanação das duas variantes. Deve, acima de tudo, desenvolver sua aula a partir do aluno, da potencialidade de sua linguagem, de sua criatividade, de sua língua internalizada (materna), pois a proposta atual é de um ensino centrado no aluno (alunocêntrico).

João Mattoso Câmara Júnior (1904 - 1970), respeitadíssimo estudioso da língua, nos tranquiliza: “A língua popular quase não reage contra o fator individual de mudança desde que essa mudança não prejudique propriamente a inteligibilidade”.

O errado e o certo. As sociedades dos cinco continentes todas têm um padrão de língua a ser seguido. Isto também é inegável. Nós brasileiros aprendemos desde cedo que existe uma linguagem padrão cheia de regras gramaticais pela qual todos devem se pautar.

A correção é a obediência a essa linguagem padrão. E o livro Por uma Vida Melhor quer mostrar a importância desta obediência à norma culta, mas ao mesmo tempo esclarecer que existe também a linguagem popular que naturalmente deve entrar em igualdade de estudo, debate, reflexão junto com à variedade de prestígio social.

Por conclusão, se refletirmos melhor, mais atentamente, veremos que não se trata de erros e sim de discordâncias do uso. Se o uso estabelecido é o padrão, o gramatical, serão discordantes construções como: nóis drumimos / nóis pega o livro / a bassoura para barrer o chão.

Mas isto não quer dizer que são construções erradas no meio social. São outras formas de uso popular, coloquial, formas não-cultas, e muitas vezes, digo de passagem, estigmatizadas pela sociedade.

E no vestibular? Entendo que nas avaliações do vestibular, concursos públicos, o candidato deva pautar, sim, pela norma culta, elaborar o texto atento às regras gramaticais. Imaginem uma redação de vestibular cujo tema é Copa do Mundo na qual o seu autor inicia assim:

O brasile vai sediá a copa de 2014 e eu acho que nóis póde ser campião purque o brasile é muito bom de bola e nóis temo muito craques e a turcida brasilera vai torcê pra caramba.

Reparem que é explícita a oralidade pura do falante-redator manifestada em forma escrita. Uma oralidade que foge completamente do uso exigido pela gramática normativa e que, por isso, será considerada “errada”, inadequada, pela banca examinadora da redação.

Herbert Spencer, filósofo inglês, afirmava ser a gramática a última coisa que se devia ensinar, porque é uma filosofia do idioma, e um menino não aprende a língua materna pela definição do adjetivo, substantivo, pronome, como não aprendemos a respirar estudando gravuras de pulmões”.

Luft adverte que “é próprio do pensamento tradicional ingênuo supor que a gramática da língua está nos livros, e que os falantes, em maior ou menor grau, estropiam a língua, provocando aquelas afirmações de que “todo mundo fala errado”, como se, primeiro, os gramáticos inventassem as regras, para depois os falantes obedecerem a elas e poderem falar”.

A escola deve trabalhar a gramática interior do aluno, respeitando-a, enriquecendo-a, e, principalmente demonstrando que ela é mais uma opção natural de se falar e escrever. Mas atenção: cada uma delas - a variante popular e a variante culta - tem seu lugar de uso. Não se admite, portanto, o uso da linguagem popular em redações oficiais (vestibular, concursos, monografias e outros textos nos quais se exige o padrão culto da língua), Por outro lado, evitamos o uso da língua culta em situações que não a exigem necessariamente (conversas informais, bate-papos com familiares).

Eu não poderia deixar de mencionar o professor da Universidade de Brasília Marcos Bagno. Ele afirma que “Nenhum linguista sério, brasileiro ou estrangeiro, jamais disse ou escreveu que os estudantes usuários de variedades lingüísticas mais distantes das normas urbanas de prestígio deveriam permanecer ali, fechados em sua comunidade, em sua cultura e em sua língua. O que esses profissionais vêm tentando fazer as pessoas entenderem é que defender uma coisa não significa automaticamente combater a outra. Cabe à escola ensinar aos alunos o que eles não sabem!”

Minha filha de 11 anos de idade cursa a 5ª série (6º ano) por meio de um livro antigo adotado por sua escola que aborda a variação linguística, e seu professor de língua portuguesa orienta ela e outros alunos sobre a importância de cada uma das variantes da língua: a culta e a popular. E nem por isso minha filha e outras crianças irão desaprender a gramática, ou desobedecer às regras gramaticais. Muito pelo contrário: irão aprofundar seu conhecimento sobre a língua portuguesa, irão desenvolver melhor seu senso crítico. Isto é pura educação voltada ao progresso da criança.

É a partir da gramática interna do aluno que se chegará a alguma gramática explícita, normativa. E livros como o da autora Heloísa Ramos contribuem seguramente para desintegrar pouco a pouco o preconceito linguístico, educando de maneira cidadã e responsável as nossas crianças.

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BIBLIOGRAFIA





CÃMARA JR., JOÃO MATTOSO. Manual de expressão oral e escrita.

Ed. Vozes Ltda, Petrópolis, 1981.



LUFT, CELSO PEDRO. Língua e liberdade - Por uma nova concepção da língua materna.

Ed. Ática, São Paulo, 1997.



FRANCHI, EGLÊ PONTES. A Redação na escola - E as crianças eram difíceis...

Ed. Martins Fontes, São Paulo, 1998.