segunda-feira, 15 de março de 2010

Gramática: reformá-la é preciso.

                                 
                               “(...) o gramático treinado sabe se uma palavra dada é um adjetivo ou um verbo não por se referir a tais definições, mas praticamente da mesma maneira pela qual todos nós ao vermos um animal sabemos se é uma vaca ou um gato”. (Jespersen, 1924, p. 62)



                     Ai da alma pensante que pronunciar em público, em voz alta, a seguinte frase: A gente vamos alcançar estes objetivos. Será ela motivo de risinhos, piadinhas e de olhares tesos das pessoas que a ouvem. Todavia, estas pessoas não se dão por conta de que tal frase, embora confronte duramente com a Gramática Tradicional (a normativa ou prescritiva), alcança também a coerência, objetividade e correção gramatical do ponto de vista da Variação Linguística. Nessa perspectiva, o sujeito “A gente” encerra a idéia clara de coletividade, e portanto, podemos traduzi-la espontânea e naturalmente para “Nós”, ou seja, subjaz a informação de que há mais de uma pessoa, ao menos duas, que alcançarão estes objetivos.

                     Em seu livro “Para uma nova gramática do português”, Mário Perini aponta que a maior falha da nossa gramática tradicional está na “ausência de conscientização adequada do importe teórico das afirmações que constituem a gramática”. Em outras palavras, ele quer nos atentar para o fato de que a gramática normativa impõe uma determinada regra, mas não explica nem exemplifica as razões desta regra. Por exemplo, não explica por que o sujeito é o termo sobre o qual se faz uma declaração.

                     Vejam estas duas frases para que juntos façamos um exercício de análise sintática lógica:


                    1) Esse lanche eu não vou comer.

                    2) Em Fortaleza faz muito sol.


                   Se lhe pedir para me dizer qual o sujeito de cada uma das frases, provavelmente eu teria as seguintes respostas:


                   1) Sujeito: eu (justificativa: quem não vai comer esse lanche?).

                  2) Sujeito: inexistente ou oração sem sujeito (justificativa: verbo fazer em referência a fenômenos da natureza).

                 Estas são as esperadas respostas da maioria esmagadora de quem as analisa.

                Entretanto, estas respostas resultam num contraditório explícito da gramática normativa ao afirmar que sujeito é o termo sobre o qual se faz uma declaração. A contradição é registrada quando notamos que as referidas declarações não são feitas sobre o termo-sujeito “eu” mas sim sobre o termo “Esse lanche” que, diga-se de passagem, é objeto direto da frase. Na segunda frase, a declaração é feita a respeito de Fortaleza, o que, conforme a afirmação da gramática normativa, teríamos, por consequencia, “Fortaleza” funcionando como o sujeito.

               A gramática também não elucida por que sujeito é aquele que pratica a ação. E mais uma vez cai em contraditório como na frase na voz passiva “Vendem-se casas”, onde o “se” é uma partícula apassivadora. Esta gramática tradicional/normativa/prescritiva orienta que o verbo deve ir para o plural para concordar com seu sujeito “casas” o qual, por sua vez, evidencia-se quando a frase é transportada para a voz ativa “Casas são vendidas”. Esquece, no entanto, que quem pratica a ação não é “casas”, pois casas não se vendem, mas sim alguém, uma pessoa ou pessoas, um vendedor ou vendedores. Por conclusão, muitos gramáticos e linguistas e, principalmente, os falantes brasileiros de todas as classes sociais, entendem que o sujeito não poderia ser “casas”, porém um agente qualquer indeterminado. De outro lado, Celso Luft acreditava que a interpretação seria “casas” como sujeito por ser a "sintaxe mais conceituada junto a pessoas de prestígio social e cultural".

                     Mário Perini arrisca uma definição de sujeito:

                   “Sujeito é o termo com o qual o verbo concorda.”

                    Na inexistência de uma definição ou conceito mais adequado de sujeito, penso que a de Perini pode ser vista como a mais aproximada da realidade gramatical e semântica e que, seguramente, constaria numa das páginas da nova gramática reformulada.

                   O que quero deixar claro aqui é que a gramática de hoje estaria sendo muito mais social e culturalmente democrática e ética se nos mostrasse em suas páginas as duas variedades de construções, como duas formas diferentes de interpretações pelos falantes do idioma: a) “Casas” como sujeito da oração e b) “Casas” como sujeito indeterminado por força da construção frasal “Vende-se casas” em que não haveria pluralização do verbo vender. A gramática erra na medida em que deixa para trás o estudo do pragmatismo (o sentido de tudo está na utilidade - ou efeito prático - que qualquer ato, objeto ou proposição possa ser capaz de gerar) e da semântica (significação do ato ou objeto), dois eixos intrinsecamente ligados a ela e que, há milhões de anos, fazem parte do pensamento e da linguagem do ser humano.

                   São estas discrepâncias, dentre muitas outras, que nos deixam duvidosos quanto à veracidade de algumas afirmações da Gramática Tradicional.

                  Minha proposta, na qualidade de professor de língua portuguesa, educador e pesquisador e, especialmente, como falante do idioma brasileiro, consiste na reformulação da gramática que hoje consultamos. Uma reformulação baseada nos princípios linguísticos que levassem em consideração as necessidades reais dos falantes brasileiros, as idiossincrasias, particularidades de seus regionalismos e seus subdialetos, dos falares e subfalares do Norte ao Sul do país. Uma reformulação que deixasse registradas nas páginas dessa nova gramática as variáveis e variantes lingüísticas de certas comunidades, respeitando seus modos de dizer e escrever a mesma coisa em um mesmo contexto, com idêntico valor de verdade. Agindo assim, a nova gramática estaria desmoronando um cruel e antigo tabu: o preconceito lingüístico.

                   Mário Perini e tantos outros estudiosos do tema estão trabalhando neste propósito, por meio de suas palestras, publicações de artigos, resenhas, ensaios e livros. Seus trabalhos estão chegando às Faculdades de Letras do Brasil. Obstáculos existem para almejar tal missão, mas com o passar dos anos, a gramática terá mudanças, ou melhor, ganhará reformas com vistas a se adequar às diferentes sociedades brasileiras que falam e escrevem o idioma que lhes melhor convier.

                  Acredito que a gente vai (ou vamos) alcançar estes objetivos, porquanto somos cidadãos de direitos e deveres e formamos essa sociedade. Nessa linha, remonto ao sociolinguista americano William Labov (1960), expoente maior da Variação Lingüística, que sempre insistiu na relação entre língua e sociedade (sociedade que é feita de gente) para fundamentar seus estudos em torno da sociolingüística quantitativa.

                  Finalizo este artigo com uma máxima do porto-alegrense Luís Fernando Veríssimo, filho do escritor Érico Veríssimo:

                “A gramática precisa apanhar todos os dias pra saber quem é que manda.”


Bibliografia comentada:

Perini, Mário A. (2000). Para uma nova gramática do português.

Editora Ática, São Paulo/SP.

O livro apresenta uma proposta de renovação do ensino gramatical em nossas escolas, a partir de uma crítica das bases da gramática tradicional.


Tarallo, Fernando (1997). A pesquisa sócio-lingüística.

Editora Ática, São Paulo/SP.


O autor discute tópicos gerais da teoria da variação e da mudança lingüística e apresenta os passos metodológicos a serem trilhados pelo pesquisador atuante na teoria.