terça-feira, 24 de setembro de 2013

É facultativo?



Então voltemos a falar sobre a parte mecânica de nossa estimada língua, a gramática normativa. Mais precisamente de empregos facultativos.

• Que expressão usar em:
Vou lhe entregar o documento “em mãos” ou “em mão”?
O uso é facultativo?

Resposta: Sim, é facultativo. Ou seja, opcional, podemos usar uma ou outra expressão sem trazer prejuízo semântico (significado) ao enunciado, pois a pessoa (destinatário) receberá o documento com uma mão ou duas mãos. Entretanto, há uma tendência de se dar preferência para o uso no singular “em mão”.

• Vou “até a praia” ou “até à praia”?

Facultativo. A expressão “até a” nos permite usar ou não a crase.
Ex.: Devo chegar na reunião até as / às 15 horas.

• Informei sobre a reunião “a sua assessora” ou “à sua assessora”?

É facultativo. Diante de pronomes possessivos femininos usaremos ou não a crase.

Outros exemplos: Informei “a minha / à minha aluna sobre as aulas.
Entrego-lhe o convite visando a / à nossa participação no evento.

• Solicitei o processo “a Maria” ou “à Maria”.

Também facultativo. Isto é, as duas formas estão corretas, pois diante de nomes próprios femininos, craseamos ou não o artigo “a”.

Aliás, estes são os três casos da crase (“até a” - pronomes de posse femininos – nomes próprios femininos) que são de uso facultativo.

Mas quando usar um ou outro, já que o emprego é opcional?

Tudo vai depender do estilo de escrever do autor do texto; de quem assinará o texto e, principalmente, do contexto em que se situa o texto. Também, daremos preferência ao uso de determinada expressão ao consideramos os termos utilizados antes e depois da expressão. Por exemplo:

Entrego ao senhor o convite com vistas a sua participação, pois a reunião, que ocorrerá amanhã às 15 horas, visa à melhoria do sistema recentemente implantado. Posteriormente, informarei do local deste evento ao senhor e a sua equipe.

Neste texto, além do estilo do seu autor e de quem o subscreverá, é imperante ainda que tenhamos cautela no demasiado uso da crase, já que é obrigatório seu emprego nos artigos “a” que ocorrem em “...às 15 horas” e em “...visa à melhoria”. Para melhor enxugamento deste texto, recomenda-se não usar a crase antes dos pronomes possessivos femininos em “...a sua participação” e “...a sua equipe”.

Quem faz a gramática somos nós falantes. Ela não nasce do acaso. E não existiria sem nossa existência. Parece ser óbvia esta constatação, mas é preciso fazê-la presente em nossa lembrança dia a dia. A gramática pouca anda, fica estagnada no tempo como poça d’água. Ao contrário, a língua anda (e às vezes muito rápido) e, nas palavras do professor linguista Marcos Bagno, flui como rio para bem movimentar poças d’água.

E, quando expressivo grupo de falantes do idioma tupiniquim consagra o uso de determinadas expressões de sua língua no meio social, estas podem ser incorporadas naturalmente na gramática normativa, a exemplo das expressões de uso facultativo.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

O atropelado






Tarde de domingo sem sol. A rua estava cheia de gente. Dona Firmina viu tudo.
- O caminhão... – Ainda soluçava – o caminhão veio na contramão e, ai meu deus, deu nisso aí - Abaixou a cabeça escondendo o rosto triste com as duas mãos.
O choque fora violenta, é verdade. Mas a senhora Firmina, dona do salão de beleza Pente Mágico, sempre se empolgava a mais diante desse tipo de acontecimento. Fazia careta de criança, uma hora e outra dava uns pulinhos e gritava “cruz credo!” a cada instante. A coisa piorou quando o senhor Portuga, farmacêutico da cidade e colega de conversa fiada da cabeleireira histérica, deixou o seu recinto de trabalho e se meteu no meio de toda aquela gente curiosa. Tagarelou:
- Que se vê? Que se vê? – Nervoso, coçava o bigode alongado – Oh, Santa Edwiges! Pois não é que o estrago foi graúdo! Ele era tão novo, tão novinho. Destino ingrato este do coitado do Dr. Gervásio Pires, tinha-o como quem guarda um tesouro.
- Novinho e bonitão! – emendou uma senhora magrela de cabelos pintados de ruivo.
Dona Firmina conteve a emoção. Franziu a testa. Inventou uma tosse breve. Tudo tinha limite. A proprietária do único salão de beleza da cidadezinha não poderia agir daquele modo. A voz lhe pareceu mais delicada.
- Seu Portuga, o Dr. Gervásio Pires sofre de coração, se isso bate no ouvido dele...morre de uma vez!
- E como se deu a tragédia? – Os olhos pregados no atropelado.
- Ele estava parado aí, quietinho, na calçada. Então apareceu o caminhão correndo feito maluco e fez essa besteira. A família não vai se conformar.
- E o autor desse estrago, cadê?
- Deve de ter fugido – Lamentou Dona Firmina.
Um engraxate (tinha lá seus doze anos de idade), sentado no meio-fio, cuspiu no chão e disse:
- O homem não teve culpa não. Eu vi, juro.
O farmacêutico explodiu:
- Cala-te a boca, moleque! Tu não sabes o que falas. Lugar de pirralho é na escola, ora pois.

Ali estava o cenário com cheiro de óleo queimado. O caminhão meio amassado. O atropelado sob os olhares curiosos. Depois de alguns minutos é que o carro da polícia chegou. Pronto. Acabara-se a festa.
- Sai todo mundo! Vamos! – Berrava, eufórico, o soldado grandalhão demonstrando habilidade no manuseio de seu cassetete.
A mulher de cabelos ruivos foi quem primeiro deixou o local do acidente. Pouco a pouco, as pessoas iam se dispersando. Dona Firmina e seu Portuga saíram, cabisbaixos, para tratar de seus negócios.
O policial puxou a antena do radiotransmissor e berrou novamente:
- Positivo! Manda o reboque maior. Quê? O atropelado? – Esticou uma gargalhada – O atropelado é um automóvel. Uma Mercedes de luxo. 

quinta-feira, 11 de abril de 2013



Prezad@s,

As abreviaturas “At.te” e “Atte”  de “Atenciosamente”, embora gramaticalmente corretas, vêm sendo pouquíssima empregadas por nós usuários da língua portuguesa. Para a gramática normativa, as abreviaturas “At.te” e “Atte” não se acham ainda em vias de consagração de uso, ou seja, a maioria dos falantes ainda não assimilaram estas abreviaturas, mas sim “at” e/ou “att” que também são corretas para uso em texto eletrônicos (e-mails). Alguns manuais de redação recomendam usar o fechamento por extenso “Atenciosamente” por considerarem mais cortês, elegante, respeitoso com o destinatário.

 Meu entendimento, como professor de língua portuguesa, é que podemos dar preferência pelo uso de “at” ou “att” no lugar de “at.te” ou “atte”, pois, ao contrário, o receptor da mensagem eletrônica (e-mail) poderá estranhar as abreviaturas “at.te” ou “atte”, causando-lhe confusão semântica (significado), uma vez que  ele está há muito tempo habituado a receber e ler “at” ou “att” e as interpretará como sendo abreviaturas de “Atenciosamente”.

 A preferência pelo uso de “at” ou “att” garantirá o principal  elemento a ser almejado num texto: a clareza.

 Espero ter contribuído.

 Att
ou
At,

 Ricardo D. Lins Freitas
www.textorevisado.com.br
(61) 8124-6177

segunda-feira, 25 de março de 2013

Aluno estudante




         
O quadro negro abarrotado de riscos, palavras, números. Passos curtos, quase calculados, o professor caminha sereno, gesticulando mãos, explica isto, explica aquilo, apaga quadro negro,  dedos indicador e polegar maculados de giz branco. À frente do mestre, o aluno. Este que vai à escola para exercer seu dever e direito: assistir a aulas, ou seja, ouvir por seguidas horas coisas sobre análise sintática, expressão numérica, divisão celular, planícies, planaltos, tabela periódica, história geral do Brasil e tudo mais. Ser aluno não é ser estudante. Aluno assiste a aulas, estudante estuda.

Lembrem-se dos anos em que íamos à escola e gastávamos a maior parte do tempo dentro de sala, tentando compreender as explicações do professor sobre determinada disciplina? Daí vinha o intervalo onde muito raramente conversávamos sobre a aula dada em sala. O que fazíamos de fato era ir à cantina comprar lanche e jogar conversa fora com os colegas. Nada mais justo. Ouvíamos, assistíamos a vídeos educativos, escrevíamos também em sala de aula. Dentro da escola, éramos alunos, máquinas de passar para o papel aquilo registrado no quadro negro. Mas fora da escola, tínhamos mesmo de ser estudantes, que dizer, estudar em casa, na biblioteca, em silêncio e, principalmente, estudar sozinho. O estudante e o livro. Estudar tudo aquilo que o professor ministrou em sala de aula.

Estudar implica necessariamente escrever. A lápis ou à caneta. Digitar em vez de escrever não é recomendável, pois o estudante não fará prova com teclado do computador às mãos. Temos muitos alunos, às sobras, mas estudantes, arrisco-me a dizer, ainda são poucos. Os alunos em sua maioria saem da escola com suas anotações nos cadernos, e as tarefas de casa habitualmente fazem sem o estudo direcionado como a pesquisa, a consulta a livros, ser curioso, investigador acima de tudo. Ser aluno estudante. Porque o indivíduo vai à escola para entender (condição de aluno) e, depois, sai da escola para aprender (condição de estudante).

O professor Pierluigi Piazzi, autor de livros didáticos como o “Aprendendo Inteligência - Manual de Instruções do Cérebro para Alunos em Geral” e louvável palestrante em diferentes escolas públicas e particulares brasileiras, nos atenta para o fato de que

O ciclo da aprendizagem é circadiano, ou seja, começa, acontece e se
encerra em 24 horas!

Nessas 24 horas temos 3 fases distintas:
Durante as aulas: entender!
Durante a tarefa: aprender!
Durante o sono: fixar!

É verdade que muitos alunos têm dificuldades em assumir a postura de estudante, pois esbarram em obstáculos que o impedem de fazê-lo. Mas aí deve entrar em cena a figura dos pais que poderão despertar nos filhos o gosto pela leitura, pelos livros, pelos estudos, pelo uso da biblioteca.

        Se agirmos assim, estimulando a criança, o adolescente, já desde cedo, a estudar todos os dias depois de assistir a aulas na escola, estaremos formando um estudante, plantando um terreno fecundo de informações para que ele as aproveite hoje, amanhã e sempre. Porquanto educar é tarefa essencialmente de pais, e ensinar é ofício que cabe à escola.
        
     Findo este artigo reforçando que aluno que estuda dia a dia, após ter visto e compreendido as aulas do professor na escola, terá grandes chances de fazer um excelente exame escrito de vestibular e até mesmo do tão almejado concurso público.

segunda-feira, 11 de março de 2013

CRASE





SE VENHO DA, CRASEIO O "A"
SE VENHO DE, CRASE PRA QUÊ?

Vou à Brasília de meus avós (Venho da Brasília de meus avós). Venho da, portanto craseio o "a".

Vou a Brasília (Venho de Brasília). Venho de, portanto crase pra quê?

sexta-feira, 1 de março de 2013

Padronização de textos oficiais

           Dia desses entrei numa loja de alimentação de grande porte e observei que seus empregados usavam vestimentas idênticas, calça e camisas com as mesmas cores e detalhes, logomarca da empresa no canto superior esquerdo da camisa, e até boné também padronizado. Saí da loja, andei a minha casa, uns 300 metros, e avistei um daqueles empregados da loja usando uniforme. E uma outra pessoa do meu lado, de traços joviais, chamou em voz alta a pessoa uniformizada pelo nome da empresa, como se fosse seu apelido.

           Este episódio atiçou-me a refletir demoradamente sobre a importância da padronização. E padronizar não somente o uniforme de uma empresa, mas também, por exemplos, o de uma equipe de futebol, o uniforme utilizado por uma escola pública ou particular, o desenho dos prédios de um condomínio residencial. Padronizar o tamanho e tipo da fonte das letras das páginas de um romance, de um relatório, de uma monografia. De um ofício.

           Padronizar redações oficiais de uma empresa pública, em conformidade com as orientações do Manual da Presidência da República. Este é o desafio lançado aos administradores contemporâneos, porquanto não se padronizam ofícios, memorandos, cartas, como se padronizam uniformes. O processo de padronização das redações oficiais alcança maior complexidade, por envolver muito mais pessoas, e pessoas com opiniões divergentes. Entretanto, entendo ser essencial uniformizar os nossos textos oficiais, sob o argumento de que a instituição pública, ou mesmo privada, tem de ter características próprias, como o seu logotipo, sua sigla, que poderão ser lidas e decodificadas por um público-leitor que, ao enxergar o texto padronizado, o identificará como sendo daquela determinada entidade. Mais: a padronização dos textos oficiais garante maior clareza, coesão e coerência em seus enunciados. Clareza e coerência no momento em que o Manual nos orienta para descrever o tópico “Assunto:” logo após as informações do destinatário nos padrões-ofícios, quais sejam o ofício propriamente dito, o memorando e o aviso.

          O Manual da Presidência da República nasceu com essa ideia, a de oferecer subsídios para padronizar os expedientes. Trata-se de um documento que não impõe, não normatiza, mas, ao contrário, traz orientações úteis com as quais podemos elaborar nossas redações oficiais voltadas ao padrão culto da língua. Aqui, cabe-me transcrever um fragmento desta publicação (grifos e negritos meus):

          Redação Oficial:



          Em uma frase, pode-se dizer que redação oficial é a maneira pela qual o Poder Público redige atos normativos e comunicações. Interessa-nos tratá-la do ponto de vista do Poder Executivo.

          A redação oficial deve caracterizar-se pela impessoalidade, uso do padrão culto de linguagem, clareza, concisão, formalidade e uniformidade. Fundamentalmente esses atributos decorrem da Constituição, que dispõe, no artigo 37: "A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (...)". Sendo a publicidade e a impessoalidade princípios fundamentais de toda administração pública, claro está que devem igualmente nortear a elaboração dos atos e comunicações oficiais.

          Sei que haverá sempre resistências de parte de leitores e redatores quanto a seguirem à risca a padronização dos textos, o que vejo como reação natural. É preciso conscientizar-se, no entanto, de que a imposição, a todo custo, do estilo de escrever de um autor sobre o estilo de escrever de forma impessoal, clara, concisa, formal e uniforme, poderá, numa eventualidade, obscurecer a clareza de um dado texto.

          Uma hora e outra, meus amigos de dentro e fora do trabalho, meus familiares, me questionam a respeito do assunto. Minha sugestão, na condição de professor de língua portuguesa, é que busquem informações do Manual da Presidência da República e, na medida do possível, sigam as orientações deste documento que, importa dizer, embora necessite, a meu ver, de uma urgente atualização e consequente reedição, surge muito mais para somar do que atravancar o processo de produção de textos oficiais.

          Um forte abraço e obrigado por sua atenção.

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Referência:



MENDES, Gilmar Ferreira at al.Manual de redação da Presidência da República.

2. ed. rev. e atual. – Brasília: Presidência da República: 2002. 140 p.

Disponível também em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/manual/manual.htm

Língua brasileira


Neste artigo, o colunista Ricardo Dayan fala sobre a forma heterogênea com que a língua brasileira se apresenta nas mais diferentes regiões do Brasil e sua relação com o ensino.
28/01/2011 13:14
Interna Ricardo Dayan.jpgImaginemos que uma criança tenha nascido e vivido sua infância na Região Sul do Brasil. Ela terá incutido em sua língua materna a variante falada na região onde nascera e vivera, manifestando seus cacoetes linguísticos, suas expressões idiomáticas regionais. Imaginem, ainda, essa criança sulista ter de estudar, por alguma razão, numa escola situada na Região Nordeste. Caberá, então, à escola nordestina atentar para o regionalismo dessa criança e respeitar as particularidades de sua língua, desde a ordem fonética e fonológica – como seu sotaque – até a ordem morfológica – a sua escrita e repertório vocabular.

O professor deve ensinar aos alunos a língua-padrão, que é a língua culta socialmente dominante, mas não pode ensiná-la depreciando a língua materna do aluno. Não se trata de substituir o ensino de uma língua por outra. O idioma internalizado na criança há de ser respeitado e levado em consideração se se pretende inculcar-lhe as normas gramaticais. As escolas públicas e particulares, espaços historicamente reservados para que a criança aprenda bons valores e costumes, têm de estar todas conscientes de que a língua brasileira é heterogênea, ou seja, apresenta diferentes fomas de se pronunciar e escrever palavras, com suas variantes distintas ocorrentes nas regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul.

Gilles Gagné, pesquisador francês quebequense, argumenta que “a pragmática, as teorias da enunciação, a análise do discurso, os modelos psicolinguísticos de aprendizagem da língua não atingiram um grau de universalidade e de desenvolvimento suficientes para que os pedagogos colham ali os dados diretamente úteis ou seguros para o planejamento pedagógico”. Nessa linha de raciocínio, acredito que um grave erro cometido por um pedagogo consiste em ensinar determinada ciência, seja humana (Língua Brasileira) ou exata (Matemática) sem priorizar o fator humano. Quer dizer, sem enxergar cada aluno como indivíduo único que carrega sentimentos próprios e que, principalmente, expressa maneiras próprias de falar, escrever, gesticular.

A heterogeneidade começa naturalmente dentro da sala de aula. Num grupo de 30 alunos, por exemplo, muito comum será perceber que os indivíduos têm comportamentos, reações, costumes heterogêneos, isto é, comportam-se e reagem cada um de uma maneira diferente. É aqui que deveria entrar um modelo psicolinguístico de aprendizagem da língua mencionado por Gagné. Um modelo que atendesse às necessidades da criança brasileira, a nortista, a nordestina, a do Centro-Oeste, a do Sudeste e a do Sul, cada qual com seu jeito característico de falar.

Uma notícia que nos agrada: as escolas públicas e privadas estão se despertando, aos poucos, para essa realidade. Seus professores, malgrado a rebuscada e para muitos ininteligível linguagem empregada nos PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais), sentem a necessidade de ajustar o planejamento pedagógico voltado a atender às necessidades de seus alunos, mediante adequação do conteúdo dos livros didáticos de Língua Portuguesa, das aulas da disciplina ministradas por eles em sala de aula, e, ainda, por meio de uma eventual convocação à escola do pai, da mãe ou responsável pela criança quando há necessidade de fazê-lo para solucionar problemas relativos ao desempenho escolar dos filhos.

O professor e escritor Marcos Bagno, defensor e incentivador incansável de um novo ensino da língua baseado na dinâmica social contemporânea, autor dos utilíssimos livros, como O preconceito linguístico e A língua de Eulália, dentre outros, considera que o ensino de língua no Brasil, neste início de século XXI, se encontra numa nítida fase de transição. Não se sabe, todavia, até quando essa fase perdurará. Na visão de Bagno, com a qual me solidarizo, “a língua como uma essência não existe: o que existe são seres humanos que falam línguas”. Bagno quer dizer que devemos olhar para a língua inserida na realidade histórica, cultural, social na qual ela se encontra. Através deste olhar, consideraremos a língua como atividade social e, por consequência, entenderemos e aceitaremos melhor a heterogeneidade de nosso idioma.

Ao colegas do MDS entrego uma questão-desafio para refletirem vagarosamente a respeito e, se possível , respondê-la: Por que, para que e como ensinar língua brasileira na escola? A resposta, sem limitação de quantidade de linhas, poderá ser encaminhada para meu e-mail ricardo.freitas@mds.gov.br até o dia 4 de fevereiro de 2011. Selecionarei uma resposta e seu autor será contemplado com um exemplar do livro “Preconceito linguístico” de Marcos Bagno. O resultado será divulgado nesta intranet no próximo dia 7 de fevereiro. Mãos à obra e muita boa sorte.


Bibliografia:
BAGNO, Marcos; STUBBS, Michael; GAGNÉ, Gilles. Língua Materna - letramento, variação & ensino. São Paulo: Parábola Editorial, 2002.

Ricardo Dayan, além de professor de português, é funcionário da Assessoria Técnica do MDS e colaborador ativo da Intranet.

A língua de Alex



“Senti todos os meus malenques pelinhos do meu plote ficando de pé. Calafrios subindo, como malenques e lentos lagartos... porque eu conhecia aquilo. Era um trecho da gloriosa Nona de Ludwing Van.”

A tarde estava encoberta por um sol morno, e eu já havia assistido à aula de geografia. Era intervalo (o delicioso “recreio”, assim por nós apelidado) e a aula seguinte seria de matemática. Pois bem. Restando poucos minutos para o término do intervalo, eis que me veio a ideia mirabolante de “matar” a próxima aula. Explodiu-me num lampejo esta estranha e formidável ideia de não assistir à aula de matemática. Formidável porque eu, num ato de coragem, “mataria” a disciplina por uma boa causa. Um causa, digamos, de ordem cultural.

Saí às pressas, quase como fugindo dos olhares repressivos de todos os professores daquela escola. Do mestre de matemática, então, quase o via na minha frente de braços cruzados batendo o pé e reprovando minha atitude: “Ei, rapazote, vamos voltar pra sala de aula?”. E escapei da escola até chegar à rua, atravessá-la e pegar o primeiro ônibus em direção à Rodoviária. Lá chegando, caminhei até o edifício Conic e mais adiante o encantador Cine Atlântida, hoje desativado. Cartazes na parede confirmaram o que dias atrás meus olhos leram na seção de cinema no principal jornal da cidade:

“Em cartaz ‘Laranja mecânica’ (‘A clockwork orange’), do diretor Stanley Kubrick”.

A sinopse do filme atiçou-me os neurônios, e um dos cartazes exibia um homem de olhos esbugalhados, a boca aberta, o semblante demasiadamente sôfrego e aterrador. Aquilo causou turbilhão em meus pensamentos, de modo que logo paguei o bilhete e corri para garantir um bom lugar na espaçosa sala de lustres e tapetes suntuosos.
 foto1.jpg
 Eu relutava com meus botões: que diabo de relação poderia haver entre o título do filme e sua história. Meus caros, o início do filme nos convida a permanecer tesos na poltrona e vidrar os olhos na tela. O ator Malcolm MacDowell vive o protagonista Alex (Alexander De Large), jovem de personalidade ultraviolenta, admirador dos clássicos de Ludwig Van Beethoven, e que tem obsessão por estuprar, roubar e matar. E é o próprio Alex quem narra a maior parte do filme empregando o “Nadsat”, mistura de russo, inglês e cockney (dialeto inglês), ou seja, um conjunto de gírias criado pelo escritor inglês Anthony Burgess, autor do livro “Laranja mecânica” (1962), que inspirou Kubrick a criar sua versão para as telas do cinema.

Na língua de Alex, a expressão “rozzer” significa polícia, “drugue” é amigo, “chavalco” é homem, “moloko” é leite. “Eslovo” quer dizer palavra.

“Não direi nem um só eslovo sem o meu advogado presente.”

Em alguns dizeres de Alex, só é possível traduzir todo ou parte do seu significado através do conjunto de cenas, personagens, gestos, sons ou outros elementos. Com efeito, o dicionário para a tradução da língua de Alex será o contexto em que ela ocorre, a exemplo das expressões “sofistos”, “gavoritando” e “Prisestas”.

“Havia uns sofistos da TV perto de gente rindo e gavoritando.”

E mais adiante:

“Eu estava um pouco triste por deixar a velha Prisesta.”

A língua de Alex deve penetrar em nossos ouvidos perturbadora e enigmática, e perplexos haveremos de ficar diante de cada cena do filme, como criança que pela primeira vez se defronta com um eclipse solar. Daí podemos associar que o “Nadsat” seja tão duro, estranho e mecânico como são quase todas as cenas do filme. Combinação perfeita.

“Laranja mecânica” é bizarro em sua essência, mas belo, inteligente e clássico em sua inesgotabilidade. Não é obra que se encerra em seus aproximados 137 minutos de duração. Aos olhos de um mortal telespectador, ela pode durar um dia, um mês. Ou até mesmo uma eternidade.

Clique no link abaixo para ver um trêiler do filme:
http://www.youtube.com/watch?v=G7fO3bzPeBQ&feature=fvwp&NR=1
(duração 2’6”)

Tatuagemulher-borboleta

D’outro mundo de florestas fugidia
Na macia pele da mulher repousa
Uma azul borboleta que antes cedia
Seus sonhos ao vento, a qualquer cousa.

Asas de belbellita moradia
Fez na epiderme d’outra Mariposa
Que carece de asas mas sua cria
Agora de sua derme fugir não ousa.

Ó, borboleta! Os predadores teus
Já não mais são os gordos anuros
Mas são os apreensivos olhares meus

Que te devoram até nos escuros
Guetos onde outras mulheres de Deus
se escondem, curvas, atrás dos muros.

O visitante



Por detrás do teto escuro eu ouço
Vozes, lamentos, o fino uivo d’um cão...
E nas agruras deste calabouço
Sofro dentro deste vil caixão.

Por detrás do teto escuro um moço
Que lento balbucia: “Meu Pai, perdão!”
Chega a estalar-me o osso
Essa moça voz deste anfitrião

Por detrás do teto escuto o Terço,
Pai-Nossos, Credos... sou bem quisto.
E meu corpo duro como gesso...

Novamente a voz, e não resisto:
“Quem és tu?, pois já padeço.”
E a rouca voz: Filho, sou Jesus Cristo!

(Paródia ao poema “Meus oito anos” de Casimiro de Abreu)




Ai que saudade que tenho da aurora dos bons filmes,
da cinemateca querida, que os anos não fazem mais.
Que elenco, que glamour, que valores!
Naqueles cines de luxo, ia-se ver John Wayne,
Grace Kelly, Bete Davis e o Sinatra a cantar.

Como eram belos os dias
Da produção do cinema!
Respirava da alma, a essência,
a bela atriz, o bom ator:
Omar Sharif de olhar sereno
interpretando Doutor Jivago
e o Carlitos de Charles Chaplin, sorrindo,
ao triste “Garoto” oferecendo afago.

Naqueles tempos de glória,
Ia-se ver faroeste:
a trilogia de Leone nos acalenta a memória,
Kirk Douglas como Ulisses em Odisseia,
enraizando amor e ódio à sua fiel plateia.

Ah, naqueles tempos de glória...
O cinema explodia em produções geniais.
Hoje é dilema com efeitos especiais,
explodindo em luzes só, sem poesia, sem história.

Ai, que saudade que tenho da aurora dos bons filmes,
onde se adormecia cantando
e se despertava a cantar.

Lá vem o carnaval



Lá vem o carnaval, com cheiro e sabor de arte
Lá já vem a baiana rodando, rodando a saia
Que a passarela é dela, do mestre-sala
Da mulher bela que porta o estandarte
Do homem compositor do bom verso
De passista que faz do chão seu universo.

Lá vem o carnaval!
A velha guarda, branca e azul
Diz que o rio que passou na vida de Paulinho
Vai fazer rio de lágrima de Norte a Sul
A velha que guarda rosa e verde em seu lar
Diz que tem menina na alma e quer sambar

Lá vem o carnaval...
Que Dodô e Osmar quer trioeletrizar seu povo
Que, de Olinda, o boneco quer pulsar de novo
O seu frenético frevo nos quadris dos foliões

Lá vem o carnaval...
Que essa gente que pulula, que apita, que grita,
Que veste máscaras e a utopia imita
É gente que bebe poesia e nem se dá conta.
Faz como o Pessoa e, de seus heterônimos,
De fantasias, finge tão completamente
Que chega a fingir que é alegria
A alegria que deveras sente.