sexta-feira, 23 de abril de 2010

Pixinguinha: uma estrela ascendente

Pixinguinha: uma estrela ascendente



Meu coração, não sei por que/Bate feliz, quando te vê/ E os meus olhos ficam sorrindo e pelas ruas vão te seguindo / Mas mesmo assim, foges de mim.

Pixinguinha, ao lado do parceiro João de Barro, desentranhara estes versos, fragmentos iniciais da canção Carinhoso (1916-1917). E prosseguira:

Ah! Se tu soubesses / Como sou tão carinhoso / E muito e muito que te quero / E como é sincero o meu amor / Eu sei que tu não fugirias mais de mim / Vem, vem, vem, vem(...)

Inspiração, coração acelerado e desacelerado, máquina de inventar poesias, quisera ir mais adiante:

Vem sentir o calor / Dos lábios meus / À procura dos teus / Vem matar esta paixão / Que me devora o coração / E só assim então / Serei feliz, bem feliz.


Alfredo da Rocha Vianna Filho, o Pixinguinha, nasceu no dia 23 de abril de 1897, no Rio de Janeiro. Era compositor, flautista, saxofonista e arranjador. Sua canção Carinhoso até os dias de hoje vagueia bela por bares, redutos de sambas e chorinhos, e vai contagiando casal de senhores e par de moçoilos enamorados. Diz-se que, após ter sido vítima de varíola, recebeu o apelido de Bexiguinha, depois Pechinguinha. E, finalmente, Pixinguinha. Compôs também Rosa (1917), outra de suas crias que, a exemplo de Carinhoso, faz rotineira pousada em lugarejos de boemias no Brasil e fora das terras tupiniquins, enchendo de amor os jardins de nossas vidas.

Dias atrás, meu sobrinho e afilhado de 15 anos de idade – que ostenta uma delicada tatuagem nas costas, fá de carteirinha do Clube Regatas Flamengo Esporte Clube (sou vascaíno!), apreciador do samba contemporâneo da banda Exaltasamba, pessoa de tenra idade do século XXI – cantarolava ele assim com aquela voz encorpada de garoto de espinhas no rosto:

Tu és, divina e graciosa
Estátua majestosa do amor
Por Deus esculturada
E formada com ardor
Da alma da mais linda flor
De mais ativo olor
Que na vida é preferida pelo beija-flor

Fiquei sobressaltado. O danado recitava música de Pixinguinha. Precisamente Rosa. Sorridente, falei a ele que aquela melodia que saía de sua boca era coisa nascida de muitos anos atrás e que ele estava dando nova vida a seu autor, o Pixinguinha. Ele retribuiu-me o sorriso e adentrara a sua casa a cantarolar outras coisinhas de samba moderno. Decerto, tinha ouvido a canção Rosa em algum lugar desses cantinhos de Brasília onde ainda se pode ouvir poesia cantada de primeira qualidade.

Pois bem. Em 1911, Pixinguinha juntou-se à orquestra do rancho carnavalesco Filhas da Jardineira ou simplesmente As Jardineiras, onde conheceu os seus amigos sambistas Donga e João da Baiana. Foi chamado numa época de Carne Assada, pois uma vez apropriou-se de um pedaço de carne assada antes do almoço que seria servido pela família aos convidados.

Frequentava as rodas de choro na famosa casa da sambista e baiana Tia Ciata, que ajudou a levar o samba da Bahia para o Rio de Janeiro. Na casa da Tia Ciata, o choro acontecia na sala, e o samba, no quintal. Lá é que nasceu o famoso Pelo telefone (O chefe da polícia pelo telefone manda me avisar/que na Carioca tem um a roleta para se jogar...), de Donga e Mauro de Almeida, considerado o primeiro samba gravado de que se tem conhecimento.

O precoce artista “matava” aula para tocar na casa de chope A Concha, na Lapa Boêmia, no que seria o seu primeiro emprego. “Às vezes, ia lá com a farda do Colégio São Bento”, revelou Pixinguinha em seu depoimento ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro.

No ano de 1955, Pixinguinha gravara seu primeiro long-play (LP) intitulado Velha Guarda e, em novembro de 1957, foi um dos convidados pelo presidente Juscelino Kubitschek a almoçar com o trompetista Louis Armstrong no Palácio do Catete. Em 1958, sofreu um mal súbito.

Em 1971, sua esposa, Dona Beti, foi internada num hospital. Dias depois, Pixinguinha sofrera mais uma complicação cardíaca e foi também internado no mesmo hospital da sua esposa. Para que ela não soubesse que ele também estava doente, o sambista colocava um terno nos dias de visita e ia visitá-la como se estivesse vindo de casa. Dona Beti morreu no dia 7 de junho de 1972, aos 74 anos de idade.

Mais outra: certa vez, numa madrugada, quando Pixinguinha regressava de uma apresentação, ele foi surpreendido por assaltantes. Os bandidos reconheceram o músico e devolveram seu dinheiro e flauta. Pediram desculpas ao sambista e ainda resolveram escoltá-lo até sua casa, mas no meio do caminho avistaram um botequim. Aí o que deveria acabar em assalto acabou foi em samba.

Esses episódios fizeram com que Vinícius de Morais dissesse que, se não tivesse nascido Vinícius, queria ter nascido Pixinguinha.

Lamento. Ao lado de Carinhoso e Rosa, a música-choro Lamento (1928) de Pixinguinha também é saboreada costumeiramente em casas de choros, chorinhos e sambas de raiz em Brasília (Clube do Choro, Calaf, Garota Carioca), no Rio de Janeiro (Carioca da Gema e em toda a Lapa) e por todo o Brasil, desde as grandes cidades até as cidades interioranas.

No dia 17 de fevereiro de 1973, o nosso Pixinguinha falecera. Diz que fora erguido aos céus por alguém para ficar ao lado de outras estrelas. Pixinguinha-estrela, mas nunca cadente. Ao contrário, estrela ascendente que sobe e brilha mais intensa a cada vez que ouvimos e cantamos Carinhoso, Rosa, Lamento, dentre tantas outras, renascidas nas cordas de um cavaquinho ou violão. De uma flauta, de um trompete, de um saxofone. Rosa que desabrocha ainda, clássica, na voz de um certo menino de 15 anos de idade.

Num desses sábados, fui até a banca de jornais próxima de minha casa e lá estava Pixinguinha, vivo, iluminado, a descansar numa prateleira de CDs e livros de bolsos. Sua foto estampada em preto branco de um lado da capa e, de outro lado, um rol de títulos de músicas suas.

Comemoramos o Dia Nacional do Choro na data de 23 de abril, que é oficialmente uma homenagem ao nascimento de Pixinguinha. Junta-se a essa celebração a concessão, por decreto municipal, da Rua Pixinguinha onde o compositor carioca residia.

E o nosso coração, Pixinguinha, há muito já sabe por que bate mais feliz quando te vê!

terça-feira, 20 de abril de 2010

A dor de Fernando Pessoa

A dor de Fernando Pessoa

"O estudo a meu respeito, que peca só por se basear, como verdadeiros, em dados que são falsos por eu, artisticamente, não saber senão mentir".

(Fernando Pessoa)



Sabe-se lá que se deixou passar na mente sã ou doentia de Fernando Pessoa quando seus neurônios, num instante demasiadamente divino, resolveram jorrar estes versos:

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

Numa página de livro, em Interpretação do texto, os olhos de um estudante leem e releem a questão-desafio:

O que é a dor para o autor do texto (Fernando Pessoa)?

O aluno coça a cabeça, olha para um lado e outro. Talvez à procura de outra pessoa, o Fernando Pessoa, a quem não titubearia em lhe pedir ajuda: “Ei, poeta, o que você quis dizer com estes versos?”

Este aluno, meus caros, sou eu, 25 anos atrás, autor desta modesta coluna, ocupante da cadeira número sabe lá das quantas da então sala de porta com a etiqueta branca: “5ª Séria-B”. Era como se ouvisse o murmurar de algum guru a me convidar para o mundo das interpretações de texto.

Eu respondi à querida docente que a dor para Pessoa poderia ser a própria dor.

Ela me alertou que minha resposta estava errada e me afirmou que a única resposta achava-se clara, explícita no texto, a saber: “A dor que deveras sente”. Eu a contra-argumentei, com toda a minha respeitosa entonação de voz, que a minha resposta poderia estar errada ou certa do ponto de vista do autor dos versos. Que, portanto, para ter a resposta exata, teríamos de levar a pergunta a Fernando Pessoa. E lhe falei ainda (aí fui audacioso) que era como se ela, minha estimada professora, quisesse adivinhar o que eu estava pensando naquele momento. Que, então, só poderíamos apresentar hipóteses de respostas para aquela pergunta de interpretação textual. Eu a convenci e ganhei o ponto. E nem foi preciso consultar Pessoa.

Por pura teoria, o exercício de interpretar um texto, seja em forma de poesia (versos de Pessoa), de prosa (um romance de Machado de Assis), seja uma mera frase, significa esmiuçá-lo, dissecá-lo, penetrar em suas entranhas, ou seja, perceber sua temporalidade (época em que foi escrito), até mesmo a biografia de seu autor para vincular seus comportamentos, suas idéias e ideais ao conteúdo do texto. Significa, num segundo plano, identificar os seus elementos articulatórios e coesivos cuja fusão irá conferir compreensão do texto. À frente da poesia, é necessário que percebamos o seu jogo metafórico exposto pelo autor e participemos deste jogo onde cada palavra, cada junção de palavras, cada encadeamento de frases, dos versos, das estrofes, nos dará suporte para interpretar e compreender as nuances do texto.

Numa perspectiva filosófica, interpretar poesia pessoana é tentar interpretar Fernando Pessoa. Sim, limitar-se a tentar, vez que este poeta convivia com seus heterônimos Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Alberto Caeiro, três criações de sua própria mente que o fizeram homem de alta complexidade. Quem era quem? Personagens teatrais apenas? Quem deles era autor ou coautor de determinada poesia de Fernando Pessoa?

Se “O poeta é um fingidor”, podemos interpretar e inferir que Pessoa foi um fingidor, de sorte que fingia ora ser Ricardo, ora ser Álvaro, ora ser Alberto. E fingia tão completamente que chegava a fingir que era dor a dor que deveras sentia, a ponto de nos confessar que "A origem mental dos meus heterônimos está na minha tendência orgânica para a despersonalização e para a simulação" e, ainda, "Eu sou a sensação minha. Portanto, nem da minha própria existência estou certo".

No momento em que inicia seu árduo trabalho de imbricar as palavras, os versos e as rimas, o poeta não tem a intenção de entregar uma poesia com a finalidade - ainda que secundária - de levar ao leitor um trabalho exclusivamente de interpretação textual da sua obra. O poeta concebe a poesia porque sente necessidade de fazê-la, como a carregar no coração e na alma um turbilhão de sentimentos e ansiedades e jorrar tudo para fora mediante manifestação poética.

Interpretar obra pessoana é querer caminhar e se aventurar numa estrada interminável, onde, em dada ocasião, o viajante-interpretador inevitavelmente haverá de se permitir em se delirar para que possa interpretar pensamentos de Pessoa que, sobre estes, denunciara: “Introduzem-se em mim: não são pensamentos meus, mas pensamentos que passam através de mim. Não pondero, sonho; não me sinto inspirado, deliro".

À volta de que acabo por relatar, é prudente concluirmos que interpretar qualquer cousa escrita de Fernando Pessoa implica hipotetizar, deduzir o significado de sua obra.

Afortunados os que, naqueles tempos, puderam cruzar o caminho de Pessoa, ter-lhe apertado a mão, ter-lhe oferecido um sorriso, e dele arrancar respostas, ainda que “simuladas”, para as nossas questiúnculas de hoje.

Por derradeiro, inspirado pela proposta apresentada pelo nosso colega colunista Maurício Zampaulo em sua texto “Arte é conhecimento”, aos amigos leitores, interpretadores textuais por natureza, lanço-lhes este desafio:

O que foi a dor para o autor do texto (Fernando Pessoa)?

Conto com a importante participação de sua “pessoa”, enviando a sua resposta e seus comentários por e-mail.

Obrigado pela atenção, certo de que nos veremos brevemente.