quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

QUESTÃO DE GÊNERO

Questão de gênero


A pergunta que não se cansa de calar: “a presidente” ou “a presidenta”, qual destas duas formas devo usar? As duas formas estão gramaticalmente corretas. O substantivo comum de dois gêneros “presidente” vale tanto para masculino quanto para feminino, desde que venha acompanhado do artigo definido “o” ou “a”.

É necessário saber, entretanto, que a forma feminina mais comumente falada e escrita é “a presidente”, pois a maior parte da comunidade linguística brasileira percebera que a expressão “a presidenta” soa como hipercorreção, quer dizer, a busca do uso correto que se eleva “acima da correção”, tachar o termo correto como incorreto. Por analogia, teríamos, na tentativa de “corrigir” em vão uma determinada palavra, “a videnta” como forma optativa para feminino de “o vidente”. Mas também, pelo mesmo motivo de “a presidenta”, preferiu-se usar “a vidente” no lugar de “a videnta”. Do mesmo modo, preferimos pronunciar e grafar “a combatente”, e não “a combatenta”; “a servente”, e não “a serventa”; “a gerente”, e não “a gerenta”.

Nos substantivos compostos, flexionamos apenas o primeiro elemento. Assim, teremos “a diretora-presidente”, por exemplo. E a respeito de “o governante”, “a governante” de um país? Veja que, se optarmos pela construção “a governanta do país”, poder-se-á dar margem à eventual interpretação de se tratar da governanta que cuida de uma casa, aquela profissional contratada para educar crianças, e não a mulher que preside uma nação.

No mundo de hoje, tão marcado pela emancipação da mulher, com sua crescente inserção no mercado de trabalho, há uma preocupação natural - e justa - de a mulher preservar e disseminar tudo o que diz respeito a seu gênero feminino.

Uma coisa é o cargo em gênero masculino, outra coisa é o gênero da autoridade que assina. Por exemplo, o cargo de Ministro, Assessor, Professor, Diretor de uma dada instituição. Seus respectivos titulares, se mulheres, assinarão um documento obviamente como Ministra, Assessora, Professora, Diretora. Não se admitem, portanto, construções do tipo: “o assessor Maria”, mas sim “a assessora Maria”.

Observe as três frases seguintes.

O piloto pilota o helicóptero.


A criança lê o livro de Monteiro Lobato.


Meu ídolo está cantando no palco.

Estas três frases assim, soltinhas, pronunciadas e escritas sem nenhum referente anterior (anafórico) e posterior (catafórico), nos impossibilitam de afirmar se se trata de um piloto homem ou mulher, de uma criança menino ou menina ou se o ídolo refere-se a um cantor ou cantora.

Estes substantivos são chamados de sobrecomuns. São invariáveis, isto é, não variam em sua terminação nem no artigo que o precede. Sendo assim, não existem as formas “a piloto” ou “a pilota”, “o criança”, “a ídola”.

A seguir, alguns substantivos sobrecomuns seguidos de respectivas frases exemplificadoras. Por sua essência, estes substantivos admitem somente um ou outro artigo, a saber: “o” ou “a”

O cônjuge (não existe “a cônjuge”).

Ex.: Ele tinha que informar dados do seu cônjuge.


O indivíduo (não existe “a indivídua”).

Ex.: Aquela moça era um indivíduo suspeito.


O gênio (não existe “a gênia”).

Ex.: A aluna de minha sala é um gênio.

O membro (não existe “a membra”).

Ex.: Comuniquei-lhes que as assessoras são membros do comitê.

O sujeito (não existe “a sujeita”).

Ex.: Minha irmã é um sujeito divertido.


A sentinela (não existe “o sentinela”).

Ex.: Instruí aquelas sentinelas - homens de bons costumes - a ter maior atenção em suas atividades.


Assim deve funcionar a nossa língua, dinâmica e prática também na questão de gênero. Falar e escrever aquilo que a comunidade linguística achar gramaticalmente convencional e consagrado. Tudo, é claro, para dar maior clareza à mensagem que se pretende transmitir.
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Bibliografia:

DUBOIS, Jean et al. Dicionário de lingüística.

Ed. Cultrix, São Paulo/SP; 1973.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Inocência de criança: do cinema à vida real

           O pequeno Samuel Lapp (Lukas Haas) aponta o dedo indicador para a fotografia de um homem, identificando-o como o criminoso procurado, e o policial John Book (Harrison Ford), que está ao lado do menino, fica atônito porque o homem da foto é um policial. Cena pertubadora do filme A testemunha (Witness) rodado em 1985. Vi esta película dentro do luxuoso Cine Atlântida aqui em Brasília, já desativado. Na época, tinha 15 anos de idade. Samuel, com seus oito anos de idade, chamou-me atenção e até meu coração bateu mais forte quando vi esse tenso episódio do filme, pois ali estava a criança-personagem-protagonista, a testemunha do assassino. Não se tratava comumente de um adulto.

           Um dedo indicador, de inocência. A criança do filme é a criança da vida real. Menino inocente que não tem o propósito de entregar policial algum, ainda que o tenha feito involuntariamente. Mas vimos inocência de criança. E achamo-la também na comédia-drama O garoto (The kid), estrelado por Charles Chaplin em 1921. O olhar do garoto, tão singelo, carregado de sofreguidões e de poucas alegrias, denuncia o mesmo olhar de inocência de Samuel Lapp. Se fazem peraltices, se fazem birras, caretas, choramingas, são coisas de criança, ora bolas! É que tudo isso que elas insistem em fazer, e as fazem com afinco, está, acima de tudo, envernizado de imaculada inocência.

            Quem ainda não teve o prazer de contemplar A vida é bela (La vita è bella), há tempo de fazê-lo. E, ao passar ou repassar seus olhos nas cenas deste drama italiano de 1997, contemple os comportamentos, reações, gestos, expressões da criança Giusoé, menino tão inocente e encantador como Samuel Lapp e o garoto de Chaplin. Criança que é, o pequeno Giusoé acredita inocentemente que a guerra na qual ele está inserido trata-se apenas de um jogo do qual participa com intenso entusiasmo ao lado do pai.

          Outro filme italiano, o premiado Cinema paradiso (Nuovo Cinema Paradiso), de 1988, tem criança contracenando com gente adulta. O esperto Salvatore, apelidado de Totó, criança franzina, peralta, e que tem paixão desenfreada pelo cinema. Menininho custoso dá conta, sô!, como se diz no linguajar mineiro, não se pode piscar o olho que o rapazote vai lá e apronta um mal-feito.

           Que falar das sete crianças vividas no belíssimo musical A noviça rebelde (The Sound of Music) de 1967? Dirão alguns que são meninas e meninos endiabrados, indisciplinados, e por que não maldosinhos. Esquecem, todavia, que são crianças reprimidas, cujo pai viúvo, também reprimido, carecem de amor e compreensão. Carecem ser ouvidas. Até que a governanta Maria, interpretada pela atriz Julie Andrews, dá um jeito em tudo isso, trazendo amor, afeto e compreensão para essas crianças que, a partir de então, manifestam seu verdadeiro lado. O lado da criança alegre, amiga, que necessita de mão e coração acolhedores.

            Antoine de Saint-Exupéry, autor do livro O pequeno príncipe, comenta que "todas as grandes personagens começaram por serem crianças, mas poucas se recordam disso”. Dos literários Brás Cuba, Madame Bovary, Dom Quixote, até os cinematográficos Mazaropi, James Bond, Carlitos, todos uma vez na vida foram crianças. Às vezes, é verdade, não se dão ou nem se deram conta disso. Pois a vida adulta não tem início mesmo com choro e riso de criança?

            A vida nasce pueril, berrando em maternidade, depois se consola em leite materno, vida-criança que brinca, pula amarelinha, faz girar pião com barbante, e que até aponta o dedo indicador, num gesto inocente, para um certo homem suspeito. O garoto adotado por Chaplin tem rosto de gente miúda, e é preciso olhar bem no fundo de seus olhos para entender que ali mora uma criança e não gente adulta.

            Hoje, somos adultos e devemos isso pelo fato de termos sido crianças. Em cada um de nós descansa alma infantil, ali quieitinha ou, às vezes, irriquieta, mas comandada por espírito e senso adulto. Devemos nos sentir mais leves, felizes, por convivermos dia a dia com os pequenos Samuéis, Giusoés, com as tantas crianças reprimidas que reencontraram o amor, e tantos outros garotos de olhos mirrados e inocentes.

           E, para encontrar e elevar nossa felicidade, basta termos a certeza de que somos todos adultos-crianças. Ainda bem.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Padronização de textos oficiais

          Dia desses entrei numa loja de alimentação de grande porte e observei que seus empregados usavam vestimentas idênticas, calça e camisas com as mesmas cores e detalhes, logomarca da empresa no canto superior esquerdo da camisa, e até boné também padronizado. Saí da loja, andei a minha casa, uns 300 metros, e avistei um daqueles empregados da loja usando uniforme. E uma outra pessoa do meu lado, de traços joviais, chamou em voz alta a pessoa uniformizada pelo nome da empresa, como se fosse seu apelido.

          Este episódio atiçou-me a refletir demoradamente sobre a importância da padronização. E padronizar não somente o uniforme de uma empresa, mas também, por exemplos, o de uma equipe de futebol, o uniforme utilizado por uma escola pública ou particular, o desenho dos prédios de um condomínio residencial. Padronizar o tamanho e tipo da fonte das letras das páginas de um romance, de um relatório, de uma monografia. De um ofício.

          Padronizar redações oficiais de uma empresa pública, em conformidade com as orientações do Manual da Presidência da República. Este é o desafio lançado aos administradores contemporâneos, porquanto não se padronizam ofícios, memorandos, cartas, como se padronizam uniformes. O processo de padronização das redações oficiais alcança maior complexidade, por envolver muito mais pessoas, e pessoas com opiniões divergentes. Entretanto, entendo ser essencial uniformizar os nossos textos oficiais, sob o argumento de que a instituição pública, ou mesmo privada, tem de ter características próprias, como o seu logotipo, sua sigla, que poderão ser lidas e decodificadas por um público-leitor que, ao enxergar o texto padronizado, o identificará como sendo daquela determinada entidade. Mais: a padronização dos textos oficiais garante maior clareza, coesão e coerência em seus enunciados. Clareza e coerência no momento em que o Manual nos orienta para descrever o tópico “Assunto:” logo após as informações do destinatário nos padrões-ofícios, quais sejam o ofício propriamente dito, o memorando e o aviso.

           O Manual da Presidência da República nasceu com essa ideia, a de oferecer subsídios para padronizar os expedientes. Trata-se de um documento que não impõe, não normatiza, mas, ao contrário, traz orientações úteis com as quais podemos elaborar nossas redações oficiais voltadas ao padrão culto da língua. Aqui, cabe-me transcrever um fragmento desta publicação (grifos e negritos meus):

           Redação Oficial:


           Em uma frase, pode-se dizer que redação oficial é a maneira pela qual o Poder Público redige atos normativos e comunicações. Interessa-nos tratá-la do ponto de vista do Poder Executivo.

           A redação oficial deve caracterizar-se pela impessoalidade, uso do padrão culto de linguagem, clareza, concisão, formalidade e uniformidade. Fundamentalmente esses atributos decorrem da Constituição, que dispõe, no artigo 37: "A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (...)". Sendo a publicidade e a impessoalidade princípios fundamentais de toda administração pública, claro está que devem igualmente nortear a elaboração dos atos e comunicações oficiais.

          Sei que haverá sempre resistências de parte de leitores e redatores quanto a seguirem à risca a padronização dos textos, o que vejo como reação natural. É preciso conscientizar-se, no entanto, de que a imposição, a todo custo, do estilo de escrever de um autor sobre o estilo de escrever de forma impessoal, clara, concisa, formal e uniforme, poderá, numa eventualidade, obscurecer a clareza de um dado texto.

          Uma hora e outra, meus amigos de dentro e fora do trabalho, meus familiares, me questionam a respeito do assunto. Minha sugestão, na condição de professor de língua portuguesa, é que busquem informações do Manual da Presidência da República e, na medida do possível, sigam as orientações deste documento que, importa dizer, embora necessite, a meu ver, de uma urgente atualização e consequente reedição, surge muito mais para somar do que atravancar o processo de produção de textos oficiais.

          Um forte abraço e obrigado por sua atenção.

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Referência:



MENDES, Gilmar Ferreira at al.Manual de redação da Presidência da República.

2. ed. rev. e atual. – Brasília: Presidência da República: 2002. 140 p.

Disponível também em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/manual/manual.htm

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Aportuguesamento de palavras estrangeiras

        Ao entrar num restaurante, a plaqueta de madeira trincada no alto da entrada anuncia “Buffet”. Perguntei à moça recepcionista:

        - Boa tarde. Qual o preço do “bufê”?

        Ela me retribuiu com a palavra afrancesada com direito a biquinho e tudo: “Ah, o “buffet? R$ 12,50".

        Entrei, almocei e paguei pela comida. Ao sair, passei pela recepcionista, lhe entreguei a comanda e dela me despedi sem nenhum estresse.

        A palavra “buffet” tem origem etimológica na língua francesa e os franceses a pronunciam “bifê”. Mas nós brasileiros preservamos o “u” original e a aportuguesamos naturalmente para “bufê” na fala e na escrita. Se você, meu caro leitor, estiver num restaurante brasileiro, em terras brasileiras, penso que deva ficar à vontade em procunciar ou “buffet” francês ou o “bufê” brasileiro. Sempre dou preferência ao nosso tupiniquim bufê e outros aportuguesados. Temos aqui um caso de variação fonética, fenômeno linguístico onde a escolha daquela ou desta forma não comprometerá o significado da palavra em questão, qual seja, grosso modo, a “mesa para servir comes e bebes”. Entretanto, se estou lá nas terras da França, optarei sim pela forma estrangeira “buffet” para facilitar, acima de tudo, a compreenssão do diálogo em meio a franceses.

        Outra forma de aportuguesamento é a variante da palavra inglesa “stress” para o nosso idioma “estresse” . Nunca terei receio ou pudor de optar pela maneira tupiniquim de falar e escrever. É preciso ter consciência de que somos povo brasileiro, falamos e escrevemos a língua portuguesa falada e escrita no Brasil e, como tal, vejo ser natural, coerente e justo que o falante escolha a pronúncia e grafia que ele achar a mais oportuna em dada situação e ambiente.

        A perolazinha francesa: abat-jour. E tome aportuguesamento para abajur. Ainda bem. Na condição de comunidade brasileiríssima, não somos obrigados a falar ou escrever, pelos menos aqui no Brasil, determinada palavra ou expressão estrangeira nos moldes do respectivo idioma estrangeiro, como buffet, stress ou abat-jour.

       Uma pausa para analisar a expressão aportuguesada abajur. Vejam que preservamos o “r” final. Sem utilidade fonética para nossa pronúncia, pois poderíamos abrasileirar mais ainda este nome francês eliminando o “r”, o que daria origem a abaju, como em “caju”, “Aracaju” e terminações afins.

       Aqui, cabe uma pergunta: por que aportuguesamos palavras estrangeiras? Para preservar a nossa língua, à procura de uma língua pura, sem mistura? Creio que não. Falamos e escrevemos o “buffet” deles para o “bufê” nosso por razões puramente fonológicas, fonéticas e fonemáticas (relativo ao fonema, por exemplo, escrever “picape” em vez de “pickup” para preservar o som original /a/ ). Aportuguesamos ou abrasileiramos um vocábulo para facilitar a compreensão de um diálogo entre brasileiros. Palavras como buffet, pickup caem na boca do povo brasileiro que as articula de acordo com repertório de vocábulos do seu idioma brasileiro. Ou seja, não é o linguista, o gramático, o estudioso da língua, quem constrói este processo de articulação, quem instaura o aportuguesamento, mas sim o falante nativo, toda a comunidade linguística.

       Finalmente, é preciso eliminarmos qualquer manifestação de preconceito linguístico, isto é, não aceitarmos a possibilidade de um brasileiro ser ridicularizado quando ele pronuncia uma palavra estrangeira do seu jeitinho de falar abrasileirado. Jeitinho este correto, diga-se de passagem, porque o falante é brasileiro, nasceu e vive no Brasil. Havemos de ser no mínimo gramaticalmente coerentes, não? E menosprezar este seu jeito de pronunciar é menosprezar inconscientemente o próprio idioma brasileiro.

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terça-feira, 13 de julho de 2010

“Eu te amo mamãe”

“Eu te amo mamãe”


Os papéis sobre a mesa de madeira ainda com restinhos de biscoito doce. Depois do café da manhã, minha mãe entregou-me aqueles papéis e um punhado de lápis de cor. Disse-me ela que era para eu fazer desenhos ou outra coisa que criança daquela minha idade, sete anos, gostava de fazer.

Pus-me a rabiscar o papel com lápis cor de laranja escuro. Um círculo e nada mais. Vez em quando, ela encurtava os passos, caminhava perto de mim, como se por acaso, mas eu percebia que passeavam os seus olhos em minha direção. Detinha-se por alguns instantes ao meu lado, a pensar alguma coisa, e acenava com a cabeça um gesto de aprovação.

Eu sorria, satisfeito, com a reação dela. Todavia, não me contentei com o desenho apenas do círculo. Um belo círculo, na cor laranja, mas que não passava de um círculo.

Cogitei que haveria de colocar algo dentro do círculo. Minha mãe, neste momento, lavava louças na cozinha e cantarolava cantigas para crianças. Fiquei surpreso quando ela usou belissimamente o meu nome numa dessas cantigas. Meu coração estava leve e sereno com o coração dos anjos.

Foi que a ideia pululou do céu até minha cabeça. Abri mais o sorriso, fitei a minha mãezinha com os olhos cheios de amor, tremulei as mãos e, pela primeira vez, escrevi dentro do círculo minha primeira escrita, minhas primeiras palavras: “Eu te amo mamãe”.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

SONETO À BOLA

Soneto à bola



Bela! Já passeias glamourousa entre os gigantes

Que em chuteiras dos Deuses têm os pés vestidos.

Não são estes homens como os guerreiros de antes

Mas de seus espíritos estão encarnecidos.



Bola! Os estádios são teu Império, os amantes

Teus que te beijam co’s pés deixam embevecidos

Os nossos olhos como casais negros errantes

De andorinhas à caça d’um trunfo, enlouquecidos!



Teus “Feiticeiros” - os Canários titânicos,

Teus Guerreiros da Espanha e os da terra de Camões,

Digladiam-se, todos, junto à tropa de Britânicos,



A querer te possuir estes bravos Guardiões,

Viris - por te enlaçar com dribles arquitetônicos,

Febris - por te fazer arfar em alvíssimos cordões.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Pixinguinha: uma estrela ascendente

Pixinguinha: uma estrela ascendente



Meu coração, não sei por que/Bate feliz, quando te vê/ E os meus olhos ficam sorrindo e pelas ruas vão te seguindo / Mas mesmo assim, foges de mim.

Pixinguinha, ao lado do parceiro João de Barro, desentranhara estes versos, fragmentos iniciais da canção Carinhoso (1916-1917). E prosseguira:

Ah! Se tu soubesses / Como sou tão carinhoso / E muito e muito que te quero / E como é sincero o meu amor / Eu sei que tu não fugirias mais de mim / Vem, vem, vem, vem(...)

Inspiração, coração acelerado e desacelerado, máquina de inventar poesias, quisera ir mais adiante:

Vem sentir o calor / Dos lábios meus / À procura dos teus / Vem matar esta paixão / Que me devora o coração / E só assim então / Serei feliz, bem feliz.


Alfredo da Rocha Vianna Filho, o Pixinguinha, nasceu no dia 23 de abril de 1897, no Rio de Janeiro. Era compositor, flautista, saxofonista e arranjador. Sua canção Carinhoso até os dias de hoje vagueia bela por bares, redutos de sambas e chorinhos, e vai contagiando casal de senhores e par de moçoilos enamorados. Diz-se que, após ter sido vítima de varíola, recebeu o apelido de Bexiguinha, depois Pechinguinha. E, finalmente, Pixinguinha. Compôs também Rosa (1917), outra de suas crias que, a exemplo de Carinhoso, faz rotineira pousada em lugarejos de boemias no Brasil e fora das terras tupiniquins, enchendo de amor os jardins de nossas vidas.

Dias atrás, meu sobrinho e afilhado de 15 anos de idade – que ostenta uma delicada tatuagem nas costas, fá de carteirinha do Clube Regatas Flamengo Esporte Clube (sou vascaíno!), apreciador do samba contemporâneo da banda Exaltasamba, pessoa de tenra idade do século XXI – cantarolava ele assim com aquela voz encorpada de garoto de espinhas no rosto:

Tu és, divina e graciosa
Estátua majestosa do amor
Por Deus esculturada
E formada com ardor
Da alma da mais linda flor
De mais ativo olor
Que na vida é preferida pelo beija-flor

Fiquei sobressaltado. O danado recitava música de Pixinguinha. Precisamente Rosa. Sorridente, falei a ele que aquela melodia que saía de sua boca era coisa nascida de muitos anos atrás e que ele estava dando nova vida a seu autor, o Pixinguinha. Ele retribuiu-me o sorriso e adentrara a sua casa a cantarolar outras coisinhas de samba moderno. Decerto, tinha ouvido a canção Rosa em algum lugar desses cantinhos de Brasília onde ainda se pode ouvir poesia cantada de primeira qualidade.

Pois bem. Em 1911, Pixinguinha juntou-se à orquestra do rancho carnavalesco Filhas da Jardineira ou simplesmente As Jardineiras, onde conheceu os seus amigos sambistas Donga e João da Baiana. Foi chamado numa época de Carne Assada, pois uma vez apropriou-se de um pedaço de carne assada antes do almoço que seria servido pela família aos convidados.

Frequentava as rodas de choro na famosa casa da sambista e baiana Tia Ciata, que ajudou a levar o samba da Bahia para o Rio de Janeiro. Na casa da Tia Ciata, o choro acontecia na sala, e o samba, no quintal. Lá é que nasceu o famoso Pelo telefone (O chefe da polícia pelo telefone manda me avisar/que na Carioca tem um a roleta para se jogar...), de Donga e Mauro de Almeida, considerado o primeiro samba gravado de que se tem conhecimento.

O precoce artista “matava” aula para tocar na casa de chope A Concha, na Lapa Boêmia, no que seria o seu primeiro emprego. “Às vezes, ia lá com a farda do Colégio São Bento”, revelou Pixinguinha em seu depoimento ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro.

No ano de 1955, Pixinguinha gravara seu primeiro long-play (LP) intitulado Velha Guarda e, em novembro de 1957, foi um dos convidados pelo presidente Juscelino Kubitschek a almoçar com o trompetista Louis Armstrong no Palácio do Catete. Em 1958, sofreu um mal súbito.

Em 1971, sua esposa, Dona Beti, foi internada num hospital. Dias depois, Pixinguinha sofrera mais uma complicação cardíaca e foi também internado no mesmo hospital da sua esposa. Para que ela não soubesse que ele também estava doente, o sambista colocava um terno nos dias de visita e ia visitá-la como se estivesse vindo de casa. Dona Beti morreu no dia 7 de junho de 1972, aos 74 anos de idade.

Mais outra: certa vez, numa madrugada, quando Pixinguinha regressava de uma apresentação, ele foi surpreendido por assaltantes. Os bandidos reconheceram o músico e devolveram seu dinheiro e flauta. Pediram desculpas ao sambista e ainda resolveram escoltá-lo até sua casa, mas no meio do caminho avistaram um botequim. Aí o que deveria acabar em assalto acabou foi em samba.

Esses episódios fizeram com que Vinícius de Morais dissesse que, se não tivesse nascido Vinícius, queria ter nascido Pixinguinha.

Lamento. Ao lado de Carinhoso e Rosa, a música-choro Lamento (1928) de Pixinguinha também é saboreada costumeiramente em casas de choros, chorinhos e sambas de raiz em Brasília (Clube do Choro, Calaf, Garota Carioca), no Rio de Janeiro (Carioca da Gema e em toda a Lapa) e por todo o Brasil, desde as grandes cidades até as cidades interioranas.

No dia 17 de fevereiro de 1973, o nosso Pixinguinha falecera. Diz que fora erguido aos céus por alguém para ficar ao lado de outras estrelas. Pixinguinha-estrela, mas nunca cadente. Ao contrário, estrela ascendente que sobe e brilha mais intensa a cada vez que ouvimos e cantamos Carinhoso, Rosa, Lamento, dentre tantas outras, renascidas nas cordas de um cavaquinho ou violão. De uma flauta, de um trompete, de um saxofone. Rosa que desabrocha ainda, clássica, na voz de um certo menino de 15 anos de idade.

Num desses sábados, fui até a banca de jornais próxima de minha casa e lá estava Pixinguinha, vivo, iluminado, a descansar numa prateleira de CDs e livros de bolsos. Sua foto estampada em preto branco de um lado da capa e, de outro lado, um rol de títulos de músicas suas.

Comemoramos o Dia Nacional do Choro na data de 23 de abril, que é oficialmente uma homenagem ao nascimento de Pixinguinha. Junta-se a essa celebração a concessão, por decreto municipal, da Rua Pixinguinha onde o compositor carioca residia.

E o nosso coração, Pixinguinha, há muito já sabe por que bate mais feliz quando te vê!

terça-feira, 20 de abril de 2010

A dor de Fernando Pessoa

A dor de Fernando Pessoa

"O estudo a meu respeito, que peca só por se basear, como verdadeiros, em dados que são falsos por eu, artisticamente, não saber senão mentir".

(Fernando Pessoa)



Sabe-se lá que se deixou passar na mente sã ou doentia de Fernando Pessoa quando seus neurônios, num instante demasiadamente divino, resolveram jorrar estes versos:

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

Numa página de livro, em Interpretação do texto, os olhos de um estudante leem e releem a questão-desafio:

O que é a dor para o autor do texto (Fernando Pessoa)?

O aluno coça a cabeça, olha para um lado e outro. Talvez à procura de outra pessoa, o Fernando Pessoa, a quem não titubearia em lhe pedir ajuda: “Ei, poeta, o que você quis dizer com estes versos?”

Este aluno, meus caros, sou eu, 25 anos atrás, autor desta modesta coluna, ocupante da cadeira número sabe lá das quantas da então sala de porta com a etiqueta branca: “5ª Séria-B”. Era como se ouvisse o murmurar de algum guru a me convidar para o mundo das interpretações de texto.

Eu respondi à querida docente que a dor para Pessoa poderia ser a própria dor.

Ela me alertou que minha resposta estava errada e me afirmou que a única resposta achava-se clara, explícita no texto, a saber: “A dor que deveras sente”. Eu a contra-argumentei, com toda a minha respeitosa entonação de voz, que a minha resposta poderia estar errada ou certa do ponto de vista do autor dos versos. Que, portanto, para ter a resposta exata, teríamos de levar a pergunta a Fernando Pessoa. E lhe falei ainda (aí fui audacioso) que era como se ela, minha estimada professora, quisesse adivinhar o que eu estava pensando naquele momento. Que, então, só poderíamos apresentar hipóteses de respostas para aquela pergunta de interpretação textual. Eu a convenci e ganhei o ponto. E nem foi preciso consultar Pessoa.

Por pura teoria, o exercício de interpretar um texto, seja em forma de poesia (versos de Pessoa), de prosa (um romance de Machado de Assis), seja uma mera frase, significa esmiuçá-lo, dissecá-lo, penetrar em suas entranhas, ou seja, perceber sua temporalidade (época em que foi escrito), até mesmo a biografia de seu autor para vincular seus comportamentos, suas idéias e ideais ao conteúdo do texto. Significa, num segundo plano, identificar os seus elementos articulatórios e coesivos cuja fusão irá conferir compreensão do texto. À frente da poesia, é necessário que percebamos o seu jogo metafórico exposto pelo autor e participemos deste jogo onde cada palavra, cada junção de palavras, cada encadeamento de frases, dos versos, das estrofes, nos dará suporte para interpretar e compreender as nuances do texto.

Numa perspectiva filosófica, interpretar poesia pessoana é tentar interpretar Fernando Pessoa. Sim, limitar-se a tentar, vez que este poeta convivia com seus heterônimos Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Alberto Caeiro, três criações de sua própria mente que o fizeram homem de alta complexidade. Quem era quem? Personagens teatrais apenas? Quem deles era autor ou coautor de determinada poesia de Fernando Pessoa?

Se “O poeta é um fingidor”, podemos interpretar e inferir que Pessoa foi um fingidor, de sorte que fingia ora ser Ricardo, ora ser Álvaro, ora ser Alberto. E fingia tão completamente que chegava a fingir que era dor a dor que deveras sentia, a ponto de nos confessar que "A origem mental dos meus heterônimos está na minha tendência orgânica para a despersonalização e para a simulação" e, ainda, "Eu sou a sensação minha. Portanto, nem da minha própria existência estou certo".

No momento em que inicia seu árduo trabalho de imbricar as palavras, os versos e as rimas, o poeta não tem a intenção de entregar uma poesia com a finalidade - ainda que secundária - de levar ao leitor um trabalho exclusivamente de interpretação textual da sua obra. O poeta concebe a poesia porque sente necessidade de fazê-la, como a carregar no coração e na alma um turbilhão de sentimentos e ansiedades e jorrar tudo para fora mediante manifestação poética.

Interpretar obra pessoana é querer caminhar e se aventurar numa estrada interminável, onde, em dada ocasião, o viajante-interpretador inevitavelmente haverá de se permitir em se delirar para que possa interpretar pensamentos de Pessoa que, sobre estes, denunciara: “Introduzem-se em mim: não são pensamentos meus, mas pensamentos que passam através de mim. Não pondero, sonho; não me sinto inspirado, deliro".

À volta de que acabo por relatar, é prudente concluirmos que interpretar qualquer cousa escrita de Fernando Pessoa implica hipotetizar, deduzir o significado de sua obra.

Afortunados os que, naqueles tempos, puderam cruzar o caminho de Pessoa, ter-lhe apertado a mão, ter-lhe oferecido um sorriso, e dele arrancar respostas, ainda que “simuladas”, para as nossas questiúnculas de hoje.

Por derradeiro, inspirado pela proposta apresentada pelo nosso colega colunista Maurício Zampaulo em sua texto “Arte é conhecimento”, aos amigos leitores, interpretadores textuais por natureza, lanço-lhes este desafio:

O que foi a dor para o autor do texto (Fernando Pessoa)?

Conto com a importante participação de sua “pessoa”, enviando a sua resposta e seus comentários por e-mail.

Obrigado pela atenção, certo de que nos veremos brevemente.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Gramática: reformá-la é preciso.

                                 
                               “(...) o gramático treinado sabe se uma palavra dada é um adjetivo ou um verbo não por se referir a tais definições, mas praticamente da mesma maneira pela qual todos nós ao vermos um animal sabemos se é uma vaca ou um gato”. (Jespersen, 1924, p. 62)



                     Ai da alma pensante que pronunciar em público, em voz alta, a seguinte frase: A gente vamos alcançar estes objetivos. Será ela motivo de risinhos, piadinhas e de olhares tesos das pessoas que a ouvem. Todavia, estas pessoas não se dão por conta de que tal frase, embora confronte duramente com a Gramática Tradicional (a normativa ou prescritiva), alcança também a coerência, objetividade e correção gramatical do ponto de vista da Variação Linguística. Nessa perspectiva, o sujeito “A gente” encerra a idéia clara de coletividade, e portanto, podemos traduzi-la espontânea e naturalmente para “Nós”, ou seja, subjaz a informação de que há mais de uma pessoa, ao menos duas, que alcançarão estes objetivos.

                     Em seu livro “Para uma nova gramática do português”, Mário Perini aponta que a maior falha da nossa gramática tradicional está na “ausência de conscientização adequada do importe teórico das afirmações que constituem a gramática”. Em outras palavras, ele quer nos atentar para o fato de que a gramática normativa impõe uma determinada regra, mas não explica nem exemplifica as razões desta regra. Por exemplo, não explica por que o sujeito é o termo sobre o qual se faz uma declaração.

                     Vejam estas duas frases para que juntos façamos um exercício de análise sintática lógica:


                    1) Esse lanche eu não vou comer.

                    2) Em Fortaleza faz muito sol.


                   Se lhe pedir para me dizer qual o sujeito de cada uma das frases, provavelmente eu teria as seguintes respostas:


                   1) Sujeito: eu (justificativa: quem não vai comer esse lanche?).

                  2) Sujeito: inexistente ou oração sem sujeito (justificativa: verbo fazer em referência a fenômenos da natureza).

                 Estas são as esperadas respostas da maioria esmagadora de quem as analisa.

                Entretanto, estas respostas resultam num contraditório explícito da gramática normativa ao afirmar que sujeito é o termo sobre o qual se faz uma declaração. A contradição é registrada quando notamos que as referidas declarações não são feitas sobre o termo-sujeito “eu” mas sim sobre o termo “Esse lanche” que, diga-se de passagem, é objeto direto da frase. Na segunda frase, a declaração é feita a respeito de Fortaleza, o que, conforme a afirmação da gramática normativa, teríamos, por consequencia, “Fortaleza” funcionando como o sujeito.

               A gramática também não elucida por que sujeito é aquele que pratica a ação. E mais uma vez cai em contraditório como na frase na voz passiva “Vendem-se casas”, onde o “se” é uma partícula apassivadora. Esta gramática tradicional/normativa/prescritiva orienta que o verbo deve ir para o plural para concordar com seu sujeito “casas” o qual, por sua vez, evidencia-se quando a frase é transportada para a voz ativa “Casas são vendidas”. Esquece, no entanto, que quem pratica a ação não é “casas”, pois casas não se vendem, mas sim alguém, uma pessoa ou pessoas, um vendedor ou vendedores. Por conclusão, muitos gramáticos e linguistas e, principalmente, os falantes brasileiros de todas as classes sociais, entendem que o sujeito não poderia ser “casas”, porém um agente qualquer indeterminado. De outro lado, Celso Luft acreditava que a interpretação seria “casas” como sujeito por ser a "sintaxe mais conceituada junto a pessoas de prestígio social e cultural".

                     Mário Perini arrisca uma definição de sujeito:

                   “Sujeito é o termo com o qual o verbo concorda.”

                    Na inexistência de uma definição ou conceito mais adequado de sujeito, penso que a de Perini pode ser vista como a mais aproximada da realidade gramatical e semântica e que, seguramente, constaria numa das páginas da nova gramática reformulada.

                   O que quero deixar claro aqui é que a gramática de hoje estaria sendo muito mais social e culturalmente democrática e ética se nos mostrasse em suas páginas as duas variedades de construções, como duas formas diferentes de interpretações pelos falantes do idioma: a) “Casas” como sujeito da oração e b) “Casas” como sujeito indeterminado por força da construção frasal “Vende-se casas” em que não haveria pluralização do verbo vender. A gramática erra na medida em que deixa para trás o estudo do pragmatismo (o sentido de tudo está na utilidade - ou efeito prático - que qualquer ato, objeto ou proposição possa ser capaz de gerar) e da semântica (significação do ato ou objeto), dois eixos intrinsecamente ligados a ela e que, há milhões de anos, fazem parte do pensamento e da linguagem do ser humano.

                   São estas discrepâncias, dentre muitas outras, que nos deixam duvidosos quanto à veracidade de algumas afirmações da Gramática Tradicional.

                  Minha proposta, na qualidade de professor de língua portuguesa, educador e pesquisador e, especialmente, como falante do idioma brasileiro, consiste na reformulação da gramática que hoje consultamos. Uma reformulação baseada nos princípios linguísticos que levassem em consideração as necessidades reais dos falantes brasileiros, as idiossincrasias, particularidades de seus regionalismos e seus subdialetos, dos falares e subfalares do Norte ao Sul do país. Uma reformulação que deixasse registradas nas páginas dessa nova gramática as variáveis e variantes lingüísticas de certas comunidades, respeitando seus modos de dizer e escrever a mesma coisa em um mesmo contexto, com idêntico valor de verdade. Agindo assim, a nova gramática estaria desmoronando um cruel e antigo tabu: o preconceito lingüístico.

                   Mário Perini e tantos outros estudiosos do tema estão trabalhando neste propósito, por meio de suas palestras, publicações de artigos, resenhas, ensaios e livros. Seus trabalhos estão chegando às Faculdades de Letras do Brasil. Obstáculos existem para almejar tal missão, mas com o passar dos anos, a gramática terá mudanças, ou melhor, ganhará reformas com vistas a se adequar às diferentes sociedades brasileiras que falam e escrevem o idioma que lhes melhor convier.

                  Acredito que a gente vai (ou vamos) alcançar estes objetivos, porquanto somos cidadãos de direitos e deveres e formamos essa sociedade. Nessa linha, remonto ao sociolinguista americano William Labov (1960), expoente maior da Variação Lingüística, que sempre insistiu na relação entre língua e sociedade (sociedade que é feita de gente) para fundamentar seus estudos em torno da sociolingüística quantitativa.

                  Finalizo este artigo com uma máxima do porto-alegrense Luís Fernando Veríssimo, filho do escritor Érico Veríssimo:

                “A gramática precisa apanhar todos os dias pra saber quem é que manda.”


Bibliografia comentada:

Perini, Mário A. (2000). Para uma nova gramática do português.

Editora Ática, São Paulo/SP.

O livro apresenta uma proposta de renovação do ensino gramatical em nossas escolas, a partir de uma crítica das bases da gramática tradicional.


Tarallo, Fernando (1997). A pesquisa sócio-lingüística.

Editora Ática, São Paulo/SP.


O autor discute tópicos gerais da teoria da variação e da mudança lingüística e apresenta os passos metodológicos a serem trilhados pelo pesquisador atuante na teoria.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Iesus Nazarenus Rex Iudaeorum (INRI): os pingos nos “is”, os pingos nos jotas.

Lá estão elas, pequenininhas e fixadas no alto de um crucifixo, as quatro letrinhas sagradas: INRI. São iniciais da expressão latina Iesus Nazarenus Rex Iudaeroum. Tradução para o nosso português: Jesus Nazareno Reis dos Judeus.

A dita expressão costumava ser falada e escrita pelo povo latino, como os soldados romanos, cuja linguagem carregava o rótulo social de estigmatizada por ser coloquial, popular. Havia também a sua variante linguística culta, a de prestígio social, assim lida e grafada: ieshva nazareno rex ivdaeorvm.

Chamo atenção dos leitores a este fato histórico para exemplificar a origem do pingo na letra “j” (jota: do latim iota). Recentemente chegaram-me discussões em torno da obrigatoriedade deste pingo na letra “j” minúscula (javali) e/ou maiúscula (Jaguaribe) em redações exigidas nas provas escritas de concursos, vestibulares e em outras situações.

Diante de tal debate, quero apresentar-lhes as seguintes ponderações sobre a necessidade ou não-necessidade do uso deste pingo no “j”:

1ª) Na língua latina, usava-se o “I” como na palavra Iesus. Séculos e séculos após, os falantes da língua portuguesa, que é uma língua derivada do Latim, foram aos poucos articulando o “I” para o “j” com a consequente preservação do pingo no “I”, fenômeno linguístico denominado consonantização. A dúvida reside se nós falantes contemporâneous devemos usar o pingo também quando o “j” (jota) estiver em sua forma maiúscula. Ora, percebemos que no universo de jornais, revistas, livros, textos contendo linguagem culta ou mesmo popular, não se utilizam o pingo no jota maiúsculo, mas sim no minúsculo.

Grafamos então todos os jotas minúsculos, assim: javali, jabá, jeito, jantar, jura, jiló.
Mas grafamos os jotas maiúsculos assim, sem o pingo: João, Juju, Jaguari.

2ª) Entretanto, há um contraditório nessa manutenção do pingo no “j” durante a passagem do idioma latim para o português (Iesus para Jesus), qual seja o simples fato de hoje falarmos e escrevermos língua portuguesa do Brasil e não lingua latina. Não escrevemos discipulus, mas sim discípulo; não escrevemos Iesus, mas sim Jesus.

3ª) O emprego ou não-emprego do pingo no “j” minúsculo ou maiúsculo não vai alterar o significado da palavra que contenha esta letra. Digo mais: não vai comprometer a clareza do sentido da palavra ou da frase. Portanto, será indiferente o uso de uma ou outra forma, ou seja, com ou sem pingo não afetará a semântica da coisa. Ao contrário da omissão do sinalizador de cedilha do “ç” que afetaria a compreensão de um vocábulo como “taça” caso se tenha a intenção de usar um vocábulo que signifique copo (ex.: Quero uma taça de vinho) em confronte com a palavra taca (do verbo tacar) como em “O jogador taca a bola de futebol para fora do campo”.

4ª) Não se tem conhecimento da existência de gramática alguma, manual de redação ou outra publicação congênere que oriente a escrever obrigatoriamente o “j” (jota) minúsculo acompanhado do pingo. Apenas notamos que esta letra vem registrada, com pingo, no alfabeto da língua portuguesa.

Finalmente, concluímos que uma banca examinadora de concurso ou vestibular não deve exigir o uso obrigatório do pingo no jota minúsculo, pois não existe regra pré-existente sobre tal obrigatoriedade de uso. Por outro lado, deduzimos também que é de uso mais frequente e tradicional o pingo no j, de maneira que seria prudente ao candidato que faz a questão de prova optar pela forma do “j” minúsculo com pingo.

E se existe uso facultativo de determinada grafia e/ou pronúncia de palavra, verbete, optemos pelo uso daquilo que é mais frequente e tradicional, a exemplo de acrobata em vez de acróbata; safári no lugar de safari ou jibóia com pingo no “j”.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Lendo, escrevendo e reescrevendo o mundo

Lendo, escrevendo e reescrevendo o mundo


Em seu livro A importância do ato de Ler, Paulo Freire sabiamente filosofou que “a leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo mas por uma certa forma de ‘escrevê-lo’ ou de ‘reescrevê-lo’ (...)”.

Inevitavelmente nascemos leitores. Dentro de casa, fora de casa, no ambiente de trabalho, no shopping, na praia, na terra ou no mar, estamos a toda a hora praticando leituras. A leitura na televisão, nos relatórios, correspondências oficiais, nas fachadas e anúncios de lojas e cinemas, nos cartazes das barraquinhas à beira mar. A leitura do mundo sob o olhar de Paulo Freire, este notável educador pernambucano que ensinou 300 adultos a ler e a escrever em 45 dias, faleceu em 1997, mas nos deixou um legado de livros de sua autoria em torno da área de educação. Obras que nunca se esgotam, ao contrário, adquirem vitalidade a cada dia que se passa.

Retomo à prática da leitura e a questão que emerge é esta: por que e para que ler? Ler é tão essencial em nossas vidas que nascemos lendo. Lemos as palavras que vivem a se esconder nos vários cantos do mundo. O sol que nasce e se põe, os rebentos das ondas do mar, o trânsito dos carros nas vias urbanas, a peregrinação relutante dos búfalos em terras africanas, as cigarras brincando de fazer orquestras que explodem em nossos ouvidos, o brilho das luzes e as canções do Natal. Uma final entre duas equipes de futebol em copa do mundo. Tudo isso compreende ato de leitura. Então, eis a resposta à pergunta inicial deste parágrafo: lemos porque nascemos lendo e sentimos necessidade de fazê-lo, lemos com a finalidade de satisfazer nossas ansiedades em descobrir o que ainda não foi descoberto e para recriar e rever o que já existe. Lemos porque ler faz bem.

Um hora e outra, ouvimos alguém advertir que as crianças leem pouco. Esta declaração encerra uma meia-verdade. O que acontece é que elas leem muito mais aquilo que está registrado fora do papel, das páginas de um livro, revista ou jornal. Fazem leitura diariamente na televisão, por exemplo, quando assistem a desenhos animados, filmes, programas de auditório. Seria de elevada importância se estes pequenos telespectadores escrevessem as imagens televisivas no caderno, cada uma delas redigindo a seu jeitinho peculiar sem a interveniência do adulto e, depois, comparassem seus textos com os textos de outras crianças.

É preciso estimular nossos filhos, sobrinhos, netos, a ler e a escrever. Esta é missão precípua de nós, pais, mães, tios, avós. Ensiná-los a extrair as palavras do mundo. Aconselho que passeiem com a criança até um cenário perto ou longe de sua casa, pode ser um parquinho, um clube, a rodoviária, o jardim botânico, o parque da cidade, o zoológico. Cenário inspirador é que não falta. Deixe ela observar, se deliciar com a paisagem natural, as árvores, as flores, as plantas, os bichos, deixe ela ouvir, ver e sentir. O murmurar das pessoas, o canto dos passarinhos, o contato com a areia, com a toda a natureza.

Faça com que a criança se sinta à vontade e peça a ela para sentar num banco da praça ou debaixo de uma árvore. Então brinque com ela de escrever num papel, em detalhes, as coisas que vocês dois estão vendo e ouvindo naquele instante. Após este exercício de escrevinhar no papel as coisas da natureza, peça à criança para ler para você a historinha dela. Depois será a sua vez de ler o seu texto. Acredite, você estará educando a criança de uma forma magnífica que lhes darão bons frutos a curto prazo. Mais: você e ela estarão lendo o mundo e registrando as palavras-mundo no papel.

Este constitui um trabalho eminentemente educativo e pedagógico, por meio do qual a criança é estimulada a escrever de forma espontânea, natural, isto é, sem aquela imposição da escola tradicionalista que teima em obrigar o aluno a escrever e ler uma redação, o que resulta, na maioria das vezes, numa tarefa mecanizada, robotizada, sem aproveitamento algum da criatividade e conhecimento da criança. Com este trabalho de pôr tudo no papel as coisas vistas, ouvidas e sentidas, não demorará muito para que criança adquira o hábito de ir até a biblioteca ou livraria à procura de algum livro.

Quando pequeno, por volta de meus 8 anos de idade, lia a leitura do mundo. O mundo onde vivi minha infância, expresso em cores vivas nos mares de Mucuripe da cidade cearense de Fortaleza, nas jangadas abarrotadas de peixes, seus jangadeiros, os vendedores de tapioca, de picolé de castanha-de-caju. As nossas brincadeiras de menino, puxar carrinho de rolimã, soltar pipa, fazer barquinhos de papel. As músicas regionais, forró, o baião, as cantorias dos repentistas. A leitura da natureza foi o que mais me contagiou e me inspirou a escrever minhas histórias, algumas até inventadas com personagens fantasiosos.

E a escola, onde fica nesta história? A escola assume um papel fundamental no processo de aquisição do hábito de leitura infantil. Seus professores devem conclamar os pais e responsáveis dos alunos para participarem de reuniões pelo menos uma vez por mês visando a discutirem sugestões, projetos em torno de como estimular a criança a ler e escrever, em frequentar mais vezes a biblioteca (não por imposição do professor, mas por imposição espontânea do próprio aluno que escolherá o livro de sua preferência). Traz-nos despreocupação saber que algumas escolas aos poucos vêm adotando este procedimento juntamente com os pais das crianças.

Se quisermos, cada um de nós pode reunir histórias vivenciadas até agora em nossas vidas, desde a infância aos dias atuais, e registrá-las em forma de páginas como num livro. Seria bem recomendável que crianças, adolescentes, jovens, idosos utilizassem um caderno-diário e nele registrem os fatos ocorridos em seu dia-a-dia. Agindo assim, estaríamos praticando uma tarefa salutar que extrapola o exercício de memorização, na medida em que estaríamos, sem se dar por conta, realizando a leitura do mundo no passado e recriando-a para o mundo presente.

Numa visão freireana, o que a criança prescinde de fato é não apenas receber recomendações para ler este ou aquele livro, mas ser estimulada, desde a sua tenra idade, a ler, escrever e reescrever o mundo no qual ela e todos nós convivemos.

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Bibliografia


FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler (em três artigos que se completam).
Prefácio de Antonio Joaquim Severino. São Paulo: Cortez/ Autores Associados.
(26. ed., 1991). 96 p. (Coleção polêmica do nosso tempo).