segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Lendo, escrevendo e reescrevendo o mundo

Lendo, escrevendo e reescrevendo o mundo


Em seu livro A importância do ato de Ler, Paulo Freire sabiamente filosofou que “a leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo mas por uma certa forma de ‘escrevê-lo’ ou de ‘reescrevê-lo’ (...)”.

Inevitavelmente nascemos leitores. Dentro de casa, fora de casa, no ambiente de trabalho, no shopping, na praia, na terra ou no mar, estamos a toda a hora praticando leituras. A leitura na televisão, nos relatórios, correspondências oficiais, nas fachadas e anúncios de lojas e cinemas, nos cartazes das barraquinhas à beira mar. A leitura do mundo sob o olhar de Paulo Freire, este notável educador pernambucano que ensinou 300 adultos a ler e a escrever em 45 dias, faleceu em 1997, mas nos deixou um legado de livros de sua autoria em torno da área de educação. Obras que nunca se esgotam, ao contrário, adquirem vitalidade a cada dia que se passa.

Retomo à prática da leitura e a questão que emerge é esta: por que e para que ler? Ler é tão essencial em nossas vidas que nascemos lendo. Lemos as palavras que vivem a se esconder nos vários cantos do mundo. O sol que nasce e se põe, os rebentos das ondas do mar, o trânsito dos carros nas vias urbanas, a peregrinação relutante dos búfalos em terras africanas, as cigarras brincando de fazer orquestras que explodem em nossos ouvidos, o brilho das luzes e as canções do Natal. Uma final entre duas equipes de futebol em copa do mundo. Tudo isso compreende ato de leitura. Então, eis a resposta à pergunta inicial deste parágrafo: lemos porque nascemos lendo e sentimos necessidade de fazê-lo, lemos com a finalidade de satisfazer nossas ansiedades em descobrir o que ainda não foi descoberto e para recriar e rever o que já existe. Lemos porque ler faz bem.

Um hora e outra, ouvimos alguém advertir que as crianças leem pouco. Esta declaração encerra uma meia-verdade. O que acontece é que elas leem muito mais aquilo que está registrado fora do papel, das páginas de um livro, revista ou jornal. Fazem leitura diariamente na televisão, por exemplo, quando assistem a desenhos animados, filmes, programas de auditório. Seria de elevada importância se estes pequenos telespectadores escrevessem as imagens televisivas no caderno, cada uma delas redigindo a seu jeitinho peculiar sem a interveniência do adulto e, depois, comparassem seus textos com os textos de outras crianças.

É preciso estimular nossos filhos, sobrinhos, netos, a ler e a escrever. Esta é missão precípua de nós, pais, mães, tios, avós. Ensiná-los a extrair as palavras do mundo. Aconselho que passeiem com a criança até um cenário perto ou longe de sua casa, pode ser um parquinho, um clube, a rodoviária, o jardim botânico, o parque da cidade, o zoológico. Cenário inspirador é que não falta. Deixe ela observar, se deliciar com a paisagem natural, as árvores, as flores, as plantas, os bichos, deixe ela ouvir, ver e sentir. O murmurar das pessoas, o canto dos passarinhos, o contato com a areia, com a toda a natureza.

Faça com que a criança se sinta à vontade e peça a ela para sentar num banco da praça ou debaixo de uma árvore. Então brinque com ela de escrever num papel, em detalhes, as coisas que vocês dois estão vendo e ouvindo naquele instante. Após este exercício de escrevinhar no papel as coisas da natureza, peça à criança para ler para você a historinha dela. Depois será a sua vez de ler o seu texto. Acredite, você estará educando a criança de uma forma magnífica que lhes darão bons frutos a curto prazo. Mais: você e ela estarão lendo o mundo e registrando as palavras-mundo no papel.

Este constitui um trabalho eminentemente educativo e pedagógico, por meio do qual a criança é estimulada a escrever de forma espontânea, natural, isto é, sem aquela imposição da escola tradicionalista que teima em obrigar o aluno a escrever e ler uma redação, o que resulta, na maioria das vezes, numa tarefa mecanizada, robotizada, sem aproveitamento algum da criatividade e conhecimento da criança. Com este trabalho de pôr tudo no papel as coisas vistas, ouvidas e sentidas, não demorará muito para que criança adquira o hábito de ir até a biblioteca ou livraria à procura de algum livro.

Quando pequeno, por volta de meus 8 anos de idade, lia a leitura do mundo. O mundo onde vivi minha infância, expresso em cores vivas nos mares de Mucuripe da cidade cearense de Fortaleza, nas jangadas abarrotadas de peixes, seus jangadeiros, os vendedores de tapioca, de picolé de castanha-de-caju. As nossas brincadeiras de menino, puxar carrinho de rolimã, soltar pipa, fazer barquinhos de papel. As músicas regionais, forró, o baião, as cantorias dos repentistas. A leitura da natureza foi o que mais me contagiou e me inspirou a escrever minhas histórias, algumas até inventadas com personagens fantasiosos.

E a escola, onde fica nesta história? A escola assume um papel fundamental no processo de aquisição do hábito de leitura infantil. Seus professores devem conclamar os pais e responsáveis dos alunos para participarem de reuniões pelo menos uma vez por mês visando a discutirem sugestões, projetos em torno de como estimular a criança a ler e escrever, em frequentar mais vezes a biblioteca (não por imposição do professor, mas por imposição espontânea do próprio aluno que escolherá o livro de sua preferência). Traz-nos despreocupação saber que algumas escolas aos poucos vêm adotando este procedimento juntamente com os pais das crianças.

Se quisermos, cada um de nós pode reunir histórias vivenciadas até agora em nossas vidas, desde a infância aos dias atuais, e registrá-las em forma de páginas como num livro. Seria bem recomendável que crianças, adolescentes, jovens, idosos utilizassem um caderno-diário e nele registrem os fatos ocorridos em seu dia-a-dia. Agindo assim, estaríamos praticando uma tarefa salutar que extrapola o exercício de memorização, na medida em que estaríamos, sem se dar por conta, realizando a leitura do mundo no passado e recriando-a para o mundo presente.

Numa visão freireana, o que a criança prescinde de fato é não apenas receber recomendações para ler este ou aquele livro, mas ser estimulada, desde a sua tenra idade, a ler, escrever e reescrever o mundo no qual ela e todos nós convivemos.

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Bibliografia


FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler (em três artigos que se completam).
Prefácio de Antonio Joaquim Severino. São Paulo: Cortez/ Autores Associados.
(26. ed., 1991). 96 p. (Coleção polêmica do nosso tempo).