terça-feira, 20 de abril de 2010

A dor de Fernando Pessoa

A dor de Fernando Pessoa

"O estudo a meu respeito, que peca só por se basear, como verdadeiros, em dados que são falsos por eu, artisticamente, não saber senão mentir".

(Fernando Pessoa)



Sabe-se lá que se deixou passar na mente sã ou doentia de Fernando Pessoa quando seus neurônios, num instante demasiadamente divino, resolveram jorrar estes versos:

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

Numa página de livro, em Interpretação do texto, os olhos de um estudante leem e releem a questão-desafio:

O que é a dor para o autor do texto (Fernando Pessoa)?

O aluno coça a cabeça, olha para um lado e outro. Talvez à procura de outra pessoa, o Fernando Pessoa, a quem não titubearia em lhe pedir ajuda: “Ei, poeta, o que você quis dizer com estes versos?”

Este aluno, meus caros, sou eu, 25 anos atrás, autor desta modesta coluna, ocupante da cadeira número sabe lá das quantas da então sala de porta com a etiqueta branca: “5ª Séria-B”. Era como se ouvisse o murmurar de algum guru a me convidar para o mundo das interpretações de texto.

Eu respondi à querida docente que a dor para Pessoa poderia ser a própria dor.

Ela me alertou que minha resposta estava errada e me afirmou que a única resposta achava-se clara, explícita no texto, a saber: “A dor que deveras sente”. Eu a contra-argumentei, com toda a minha respeitosa entonação de voz, que a minha resposta poderia estar errada ou certa do ponto de vista do autor dos versos. Que, portanto, para ter a resposta exata, teríamos de levar a pergunta a Fernando Pessoa. E lhe falei ainda (aí fui audacioso) que era como se ela, minha estimada professora, quisesse adivinhar o que eu estava pensando naquele momento. Que, então, só poderíamos apresentar hipóteses de respostas para aquela pergunta de interpretação textual. Eu a convenci e ganhei o ponto. E nem foi preciso consultar Pessoa.

Por pura teoria, o exercício de interpretar um texto, seja em forma de poesia (versos de Pessoa), de prosa (um romance de Machado de Assis), seja uma mera frase, significa esmiuçá-lo, dissecá-lo, penetrar em suas entranhas, ou seja, perceber sua temporalidade (época em que foi escrito), até mesmo a biografia de seu autor para vincular seus comportamentos, suas idéias e ideais ao conteúdo do texto. Significa, num segundo plano, identificar os seus elementos articulatórios e coesivos cuja fusão irá conferir compreensão do texto. À frente da poesia, é necessário que percebamos o seu jogo metafórico exposto pelo autor e participemos deste jogo onde cada palavra, cada junção de palavras, cada encadeamento de frases, dos versos, das estrofes, nos dará suporte para interpretar e compreender as nuances do texto.

Numa perspectiva filosófica, interpretar poesia pessoana é tentar interpretar Fernando Pessoa. Sim, limitar-se a tentar, vez que este poeta convivia com seus heterônimos Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Alberto Caeiro, três criações de sua própria mente que o fizeram homem de alta complexidade. Quem era quem? Personagens teatrais apenas? Quem deles era autor ou coautor de determinada poesia de Fernando Pessoa?

Se “O poeta é um fingidor”, podemos interpretar e inferir que Pessoa foi um fingidor, de sorte que fingia ora ser Ricardo, ora ser Álvaro, ora ser Alberto. E fingia tão completamente que chegava a fingir que era dor a dor que deveras sentia, a ponto de nos confessar que "A origem mental dos meus heterônimos está na minha tendência orgânica para a despersonalização e para a simulação" e, ainda, "Eu sou a sensação minha. Portanto, nem da minha própria existência estou certo".

No momento em que inicia seu árduo trabalho de imbricar as palavras, os versos e as rimas, o poeta não tem a intenção de entregar uma poesia com a finalidade - ainda que secundária - de levar ao leitor um trabalho exclusivamente de interpretação textual da sua obra. O poeta concebe a poesia porque sente necessidade de fazê-la, como a carregar no coração e na alma um turbilhão de sentimentos e ansiedades e jorrar tudo para fora mediante manifestação poética.

Interpretar obra pessoana é querer caminhar e se aventurar numa estrada interminável, onde, em dada ocasião, o viajante-interpretador inevitavelmente haverá de se permitir em se delirar para que possa interpretar pensamentos de Pessoa que, sobre estes, denunciara: “Introduzem-se em mim: não são pensamentos meus, mas pensamentos que passam através de mim. Não pondero, sonho; não me sinto inspirado, deliro".

À volta de que acabo por relatar, é prudente concluirmos que interpretar qualquer cousa escrita de Fernando Pessoa implica hipotetizar, deduzir o significado de sua obra.

Afortunados os que, naqueles tempos, puderam cruzar o caminho de Pessoa, ter-lhe apertado a mão, ter-lhe oferecido um sorriso, e dele arrancar respostas, ainda que “simuladas”, para as nossas questiúnculas de hoje.

Por derradeiro, inspirado pela proposta apresentada pelo nosso colega colunista Maurício Zampaulo em sua texto “Arte é conhecimento”, aos amigos leitores, interpretadores textuais por natureza, lanço-lhes este desafio:

O que foi a dor para o autor do texto (Fernando Pessoa)?

Conto com a importante participação de sua “pessoa”, enviando a sua resposta e seus comentários por e-mail.

Obrigado pela atenção, certo de que nos veremos brevemente.

2 comentários:

  1. Parabéns por lembrar do nosso Pessoa.Adoro a obra pessoana. Acho que a dor para ele era a mesma que sentimos. Abraços.

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  2. Prezado Ricardo, vou “vomitar” minha resposta:

    A dor de Fernando Pessoa foi muito mais que a dor da carne, foi matéria-prima para sua arte.
    A dor foi fingimento tão fingido que se tornou real, assim como num teatro, onde todos sabem se tratar de uma convenção, de um “fingimento”, mas um fingimento tão verdadeiro, tão orgânico, que se torna, muitas vezes, mais real que a realidade, mais vivo que a própria vida...
    Essa é, inclusive, uma das explicações do por que fazemos arte (?!), porque temos necessidade de algo além de nossas pobres vidas, de nosso cotidiano, queremos mais...
    O ator também é um fingidor...
    dizia Jersy Grotowsky que o único lugar onde as pessoas realmente são verdadeiras é no palco, que lá elas arrancam suas máscaras, ao contrário da vida real, onde somos obrigados a viver vários personagens...

    Abraços fraternos,
    Mauricio Zampaulo

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